domingo, 5 de outubro de 2025

PSSD - POST SSRI SEXUAL DISFUNCTION (DISFUNÇÃO SEXUAL PÓS- ISRS)



A PSSD é uma disfunção caracterizada mais comumente por insensibilidade genital, orgasmo fraco ou anorgasmia, perda de libido e disfunção erétil. É uma disfunção sobre a qual se fala muito na Internet, mas se sabe pouco. Não é segredo que medicações que inibim a recaptura de serotonina causam dificuldades sexuais, em graus diversos, em até 80% das pessoas: dificuldades de orgasmo ou anorgasmia, diminuição do desejo sexual ou dificuldades de excitação. Há pessoas que apresentam apenas uma destas alterações e em grau leve e suportável. Muitas vezes, melhoram com o tempo de uso. Outras podem apresentar todos os três efeitos colaterais e assim permanecendo durante todo o tratamento que, como se sabe, pode ser necessário em caráter permanente. Existem técnicas e medicações que podem ajudar a aliviar estes sintomas: aumento do tempo de manobras de excitação antes do ato sexual; estimulação potente, manual ou oral; ou,  no caso de pacientes totalmente estabilizados (e somente por orientação médica), um dia sem medicação ou dois dias com medicação reduzida, anteriormente ao dia da relação sexual ou no próprio dia (certamente, esta opção só permite uma quantidade não muito frequente de relações), acréscimo de bupropiona ou de ciproeptadina (que, no entanto, pode impactar negativamente o tratamento). Porém, numa minoria de casos (não é conhecida a prevalência exata), há indícios de que as dificuldades continua, mesmo após uma eventual suspensão da droga (é por isto que a disfunção se chama "pós-ISRS") e com alguma frequência pessoas procuram tratamento supondo que apresentam este diagnóstico (geralmente, com base em pesquisas online).

Não se sabe ao certo as possíveis causas da PSSD e um aspecto muito importante, antes de se tentar um tratamento, é excluir outras causas possíveis para as queixas. Desta forma, já encontrei vários casos de pessoas que se autodiagnosticaram como apresentando PSSD mas, na verdade, tinham distúrbios hormonais, resíduos depressivos, sintomas ansiosos (por exemplo, dificultando a excitação) ou mesmo uso de outros remédios que poderiam comprometer o desempenho sexual. Assim, sempre que se avalia uma pessoa com esta queixa, deve-e proceder a uma entrevista cuidadosa e, em vários casos, solicitar exames complementares.

Referências bibliográficas

Alfaro KC et al.   Persistent sexual dysfunction after SSRI withdrawal: a scoping review and presentation of 86 cases from the Netherlands  Expert Opin Drug Saf. 20 22 Apr;21(4):553-561. doi: 10.1080/14740338.2022.2007883. Epub 2021 Nov 27.

Bala  A et al. PMID: 28778697 DOI: 10.1016/j.sxmr.2017.07.002   Post-SSRI Sexual Dysfunction: A Literature Review  Sex Med Rev. 2018 Jan;6(1):29-34. doi: 10.1016/j.sxmr.2017.07.002. Epub 2017 Aug 1.

Healy D; Mangin   Post-SSRI sexual dysfunction: barriers to quantifying incidence and prevalence Epidemiol Psychiatr Sci. 2024 Sep 18;33:e40. doi: 10.1017/S2045796024000441

Tarchi L et al.  Selective serotonin reuptake inhibitors, post-treatment sexual dysfunction and persistent genital arousal disorder: A systematic review Pharmacoepidemiol Drug Saf. 2023 Oct;32(10):1053-1067. doi: 10.1002/pds.5653. Epub 2023 Jun 23.


Imagem: SSRI HOW THEY WORK https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/c2/SSRI_HOW_THEY_WORK.jpg?20201018045954

terça-feira, 30 de setembro de 2025

CANNABIS (MACONHA) VICIA, SIM!


Hoje em dia, não há mais dúvidas de que a Cannabis pode "viciar". Além disto, o conceito de "vício" (ou "dependência") não é o único aspecto relevante, pois se considera que qualquer quantidade usada é prejudicial e basta a presença de dois comportamentos problemáticos para se diagnosticar um Transtorno de Uso de Cannabis (TUC). Os critérios da Associação Psiquiátrica Americana para o diagnóstico do Transtorno de Uso de Cannabis (maconha) são os seguintes:

Presença de comprometimento ou sofrimento clinicamente significativo em 12 meses, manifestado por pelo menos 2 dos seguintes sintomas:

  1. Cannabis consumida em quantidades maiores ou por um período mais longo do que o pretendido
  2. Desejo persistente de consumir ou esforços mal-sucedidos para reduzir ou controlar o consumo
  3.  Muito tempo é gasto na aquisição, no uso ou na recuperação dos efeitos do uso de Cannabi
  4. Fissura ou um forte desejo ou necessidade de usar Cannabis
  5. Uso recorrente de Cannabis, resultando em prejuízo em cumprir obrigações importantes no trabalho, escola ou em casa;
  6. Continuação do uso, apesar de problemas sociais ou interpessoais persistentes ou recorrentes causados ou exacerbados pelo uso
  7. Atividades sociais, ocupacionais ou recreativas importantes abandonadas para poder usar Cannabis
  8. Uso recorrente de Cannabis em situações fisicamente arriscadas
  9. Continuação do uso, apesar de ter problema físico ou psicológico sobre o qual sabe ter decorrido ou se exacerbado devido ao uso de Cannabis
  10. Tolerância, definida por
  • necessidade de quantidades significativamente maiores de Cannabis para levar a intoxicação ou ao efeito desejado 
  • efeito significativamente menor com o uso continuado da mesma quantidade
11. Abstinência, manifestada por:
  • sintomas de abstinência característicos da Cannabis
  • uso de Cannabis ou substância intimamente correlata para aliviar ou evitar os sintomas de abstinência
SE A PESSOA PREENCHER CRITÉRIOS PARA TUC, É SINAL DE QUE PRECISA PARAR - O QUE PODE SER FACILITADO ATRAVÉS DE TRATAMENTO ADEQUADO

Riscos de desenvolvimento de TUC, de acordo com a frequência do uso

Numa revisão de seis estudos de coorte sobre TUC, comparando usuários com não-usuários, Robinson et al. (2022) observaram riscos cerca de 2 vezes maiores de desenvolver TUC para usuários anuais, 4 vezes maiores para usuários mensais, 8 vezes maiores para usuários semanais e 17 vezes maiores para pessoas que utilizavam Cannabis diariamente.

IMPORTANTE:

Numa meta-análise envolvendo 14 publicações e 3681 participantes, em pessoas que haviam usado Cannabis medicinal nos últimos 6 a 12 meses, transtorno de uso de Cannabis foi observado em 25% das pessoas (29% usando critérios do Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Psiquiátrica Americana, 5a. edição e 24% usando os critérios da 4a. edição). Esta prevalência é semelhante à encontrada em usuários recreativos (Dawson et al., 2024).

Referências bibliográficas

American Psychiatric Association. (2022). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed., text rev.). https://doi.org/10.1176/appi.books.9780890425787

Dawson D et al.  The prevalence of cannabis use disorders in people who use medicinal cannabis: A systematic review and meta-analysis Drug Alcohol Depend. 2024 Apr 1:257:111263. doi: 10.1016/j.drugalcdep.2024.111263. Epub 2024 Mar 8.PMID: 38493566

Robinson T et al. Identifying risk-thresholds for the association between frequency of cannabis use and development of cannabis use disorder: A systematic review and meta-analysis  Drug Alcohol Depend. 2022 Sep 1:238:109582. doi: 10.1016/j.drugalcdep.2022.109582. Epub 2022 Jul 21. PMID: 35932748 DOI: 10.1016/j.drugalcdep.2022.109582

Imagem

By scanned by NobbiP - scanned by NobbiP, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=6902012

SINTOMAS DA ABSTINÊNCIA DE CANNABIS (MACONHA)



Este é um texto em desenvolvimento. Inicialmente, serão citados apenas os critérios diagnósticos da abstinência de Cannabis, segundo o DSM-5-TR (APA, 2022). Em postagens posteriores, serão acrescentadas informações sobre cada um dos sintomas de abstinência.

A. Cessação do uso intenso e prolongado de cannabis (por exemplo, habitualmente uso diário ou quase diário, por um período de pelo menos alguns meses)

B. Três (ou mais) dos seguintes sinais e sintomas se desenvolvendo, num prazo de aproximadamente uma semana, após o critério A: 

1. Irritabilidade, raiva ou agressão; 

2. Nervosismo ou ansiedade; 

3. Dificuldades de sono (por exemplo, insônia ou sonhos perturbadores); 

4. Diminuição do apetite ou perda de peso; 

5. Inquietação; 

6. Humor deprimido; 

7. Pelo menos um dos seguintes sintomas físicos, causando desconforto significativo: dores abdominais, tendência a estremecer ou tremores, sudorese, febre, calafrios ou dor de cabeça.

C. Os sinais ou sintomas do Critério B causam desconforto ou prejuízo clinicamente significativos no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes.

D. Os sinais ou sintomas não podem ser atribuídos a outra condição médica, incluindo intoxicação por outra substância ou abstinência de outra substância.


Referência bibliográfica

American Psychiatric Association. (2022). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed., text rev.). https://doi.org/10.1176/appi.books.9780890425787

Imagem: Irritability  Fry1989 eh?, Public domain, via Wikimedia Commons  https://commons.wikimedia.org/wiki/File:MHWS_-_Irritability.svg

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

CANNABIS (MACONHA) MEDICINAL FUNCIONA?



Certamente, um do assuntos mais comentados, atualmente, é a questão do uso medicinal da maconha (Cannabis). O que se tem de comprovado sobre sua utilidade?

Primeiramente, é necessário lembrar que eventuais usos sugeridos ou que possam ser sugeridos, no futuro, se referem habitualmente às substâncias contidas na maconha (mais de 120 diferentes foram identificadas) ou dela derivadas e não ao uso da maconha em sua forma natural. Portanto, dizer que "canabinoides" (o nome destas substâncias) são (eventualmente) úteis, não significa, de forma nenhuma, que se recomenda o consumo de maconha do modo como as pessoas consomem recreativamente. 

Transtornos de ansiedade e depressão: numa meta-analise de 8 estudos, envolvendo um total de 316 pacientes, observou-se melhora significativa de sintomas ansiosos com canabidiol (CBD), sugerindo sua utilidade em pacientes com transtorno de ansiedade generalizada, ansiedade social e transtorno de estresse pós-traumático. Porém, os autores fazem um alerta contra conclusões precoces, dado ao tamanho limitado da amostra clínica, recomendando que mais pesquisas sejam feitas (Han et al., 2024). Outra revisão sistemática (Cammà et al.,  2024), os autores encontraram alguns resultados positivos para o uso de canabinoides na depressão, ansiedade e transtorno de uso de nicotina ("tabagismo"). Porém, sugerem que os resultados devem servir de estímulo para mais pesquisas e não que já comprovem a eficácia - até porque analisaram vinte e dois estudos pré-clínicos e apenas um estudo clínico (em pacientes humanos). Numa revisão sistemática sobre transtornos ansiosos, foi observada melhora para transtorno de ansiedade generalizada (TAG), transtorno de ansiedade social (TAS) e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT); 30% destes estudos (n = 4) relataram um resultado negativo para condições como transtorno obsessivo-compulsivo, tricotilomania, ansiedade de teste e TAS (Roberts et al., 2025). Também nesta última revisão são comentados insuficiências ou falhas metodológicas nos estudos revistos, de modo que, também neste caso, recomenda-se mais pesquisas para confirmação dos efeitos (portanto, não sugerindo, ainda, indicação no tratamento).

Tratamento de quadros demenciais: as demências - ou transtorno neurocognitivo maior - são quadros caracterizados por declínio cognitivo progressivo (sobretudo memória, mas também em outros domínios), levando a progressiva perda da capacidade de o indivíduo dar conta de sua vida cotidiana (finanças, compromissos ou mesmo higiene). Pode ter várias causas, sendo as mais frequentes a doença de Alzheimer, a vascular e a mista (que combina ambas). Numa meta-análise de 2021, não se conseguiram demonstrar efeitos benéficos (ou prejudiciais) do delta-9-THC (natural) ou do dronabinol ou nabilona, em 126 pacientes predominantemente com Alzheimer, com uma minoria com quadros vasculares ou mistos (Kuharic et al., 2021).

Diminuição da necessidade de opioides, no tratamento da dor crônica: o uso prolongado de opioides, um dos tratamentos mais eficazes para dores, pode levar a tolerância (perda da eficácia, se as doses forem mantidas) e mesmo a dependência. Assim, são sempre feitas pesquisas sobre opções alternativas no tratamento da dor crônica, para diminuir a necessidade de opioides. Apesar de algumas evidências positivas, ainda não há evidências suficientes que comprovem a eficácia do uso da Cannabis medicinal ou de seus derivados, para diminuir a necessidade de opioides (Noori et al., 2021).

Finalmente, numa meta-análise de 152 estudos, envolvendo 12123 pacientes e todas as indicações médicas que consideraram relevantes, constatou-se que os efeitos terapêuticos significativos dos canabinoides medicinais apresentam uma grande variabilidade no grau de evidência, que depende do tipo de canabinoide. O CBD tem um efeito terapêutico significativo para epilepsia (grau alto de evidência) e parkinsonismo (grau moderado de evidências). Há evidências moderadas também para para o dronabinol, para dor crônica, aumento do apetite e síndrome de Tourette e evidências moderadas para nabiximol, na dor crônica, espasticidade, sono e transtornos de uso de substâncias. Todos os outros efeitos terapêuticos significativos têm baixo, muito baixo ou mesmo nenhum grau de evidência (Bilbao; Spanagel, 2022).



Referências bibliográficas


Bilbao A; Spanagel. Medical cannabinoids: a pharmacology-based systematic review and meta-analysis for all relevant medical indications BMC Med . 2022 Aug 19;20(1):259. doi: 10.1186/s12916-022-02459-1. PMID: 35982439 PMCID: PMC9389720 DOI: 10.1186/s12916-022-02459-1

Cammà G et al.   Therapeutic potential of minor cannabinoids in psychiatric disorders: A systematic review  Eur Neuropsychopharmacol. 2025 Feb:91:9-24. doi: 10.1016/j.euroneuro.2024.10.006. Epub 2024 Nov 13. PMID: 39541799 DOI: 10.1016/j.euroneuro.2024.10.006

Han K et al. Therapeutic potential of cannabidiol (CBD) in anxiety disorders: A systematic review and meta-analysis Psychiatry Res . 2024 Sep:339:116049. doi: 10.1016/j.psychres.2024.116049. Epub 2024 Jun 21  PMID: 38924898 DOI: 10.1016/j.psychres.2024.116049

Kuharic DB et al. Cannabinoids for the treatment of dementia PMID: 34532852 PMCID: PMC8446835 DOI: 10.1002/14651858.CD012820.pub2 Cochrane Database Syst Rev. 2021 Sep 17;9(9):CD012820. doi: 10.1002/14651858.CD012820.pub2.

Noori A   Opioid-sparing effects of medical cannabis or cannabinoids for chronic pain: a systematic review and meta-analysis of randomised and observational studies  BMJ Open. 2021 Jul 28;11(7):e047717. doi: 10.1136/bmjopen-2020-047717.  PMID: 34321302 PMCID: PMC8319983 DOI: 10.1136/bmjopen-2020-047717

Roberts L et al.  Medicinal cannabis in the management of anxiety disorders: A systematic review  Psychiatry Res. 2025 Aug:350:116552. doi: 10.1016/j.psychres.2025.116552. Epub 2025 May 17.  PMID: 40413923 DOI: 10.1016/j.psychres.2025.116552  


Imagem: Medical Cannabis  By Silar - Own work, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=51520858

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

O QUE É PSIQUIATRIA TRANSDIAGNÓSTICA?



O diagnóstico psiquiátrico convencional, atualmente, baseia-se principalmente em critérios, que aparecem nas últimas edições do Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Psiquiátrica Americana (DSM, em sua quinta versão revisada, atualmente) e no Código Internacional de Doenças (OMS, em sua décima-primeira edição, atualmente). Estas categorias diagnósticas teriam vários aspectos positivos, tais como uma linguagem comum entre os pesquisadores e uma classificação que permite dar diagnósticos aps pacientes, tirando de sobre eles julgamentos sociais do tipo "doença mental é fraqueza". No entanto, segundo alguns autores, esta categorização também pode ser a causa de uma estagnação dos resultados em psiquiatria, há alguns anos. Estes autores, partindo do principio de que as atuais categorias não correspondem a mecanismos causais específicos (uma única categoria pode abranger vários supostos mecanismos causais, enquanto que várias categorias apresentam pontos em comum, quando se investiga as causas e mecanismos de diversos transtornos), propõem uma nova forma de pesquisar em Psiquiatria, os RDoC (abreviação para Research Domain Criteria). A proposta tem como objetivo investigar a origem dos sintomas psiquiátricos, utilizando como ponto de partida o que já se sabe deles, em termos de psicofisiologia, genética e o contexto no qual os sintomas se desenvolveram, dado que os transtornos psiquiátricos provêm de uma combinação destes fatores. (internos e externos) 

Ao contrário do que ocorre com as categorias tradicionais, nas quais os sintomas estão "presentes" ou "ausentes",  sendo no máximo classificados como "leves", "moderados" ou "graves", na população eles são melhor descritos como se distribuindo ao longo de uma linha contínua. A categorização levaria, segundo os proponentes do RDoC, a uma perda da riqueza diagnóstica, além do que algumas pessoas não se encaixam em nenhuma das categorias. Também, existe uma enorme presença de comorbidades, que é a ocorrência de mais de um diagnóstico na mesma pessoa - esta presença tão frequente poderia advir de a categorização ser um processo artificial e não ser devido a uma real distinção entre diversos sintomas. (N.A.: por exemplo, por este raciocínio, a presença simultânea de um episódio depressivo maior e de um transtorno de ansiedade generalizada poderia não ser devida a duas causas - uma para a depressão e outra para a ansiedade - mas, sim um único mecanismo seria responsável por uma simultaneidade de sintomas ansiosos e depressivos). Por outro lado, como os diagnósticos são feitos através do preenchimento de um número mínimo de critérios, mas para cada diagnóstico existem vários critérios possíveis, pode ocorrer que diagnósticos iguais tenham mecanismos causais diferentes. por exemplo, no diagnóstico da depressão, uma grande heterogeneidade caracteriza os vários sistemas diagnósticos desenvolvidos no século passado, de modo que é possível que algumas listas de critérios sejam abrangentes demais e outras, demasiadamente restritivas. Outro problema apontado é a alta frequência com que, ao longo da vida, os indivíduos mudam de diagnóstico, o que pode ser consequência da confiança excessiva em diagnósticos transversais, capturando apenas um instantâneo do quadro e não as oscilações, aparecimento e desaparecimento de sintomas, ao longo da vida.

Ainda em relação às categorias diagnósticas usuais, um dos seus objetivos seria facilitar a prescrição de tratamentos. No entanto, quando se faz um diagnóstico, frequentemente sintomas que não entram nos critérios acabam não sendo tratados ou, quando o são, o tratamento é feito através de uma adaptação individualizada de intervenções.

A ALTERNATIVA TRANSDIAGNÓSTICA

O modelo da Taxonomia Hierárquica da Psicopatologia (HiTOP, Hierarchic Taxonomy of Psychopatology) surgiu como um esforço de pesquisa para abordar esses problemas. Ele constrói síndromes psicopatológicas e seus componentes/subtipos com base na covariação observada de sintomas, agrupando sintomas relacionados e, assim, reduzindo a heterogeneidade. Também combina síndromes concomitantes em espectros, mapeando assim as comorbidades. Além disto, caracteriza estes fenômenos dimensionalmente, o que leva em conta problemas de limites e da instabilidade diagnóstica (Kotov et al., 2017; Kotov et al., 2021).

Na imagem do início do texto, aparecem as sobreposições de sintomas do grupo agressivo-impulsivo-reativo,  entre Intermittent Explosive Disorder (= IED, Transtorno explosivo intermitente), Conduct Disorder (= CD, Transtorno de conduta), Disruptive Mood Dysregulation Disorder (= DMDD, Transtorno Disruptivo da Desregulação do Humor) e (Hypo)manic Episode (= HE, Episódio (hipo)maníaco). Conforme comentado, acima, a presença de sintomas semelhantes em diagnósticos distintos é um dos problemas da nosologia categórica convencional, que a abordagem transdiagnóstica procura superar, isolando sintomas com base em evidências das neurociências, da psicologia e da psicossociologia.

Em princípio, o objetivo da psiquiatria transdiagnóstica é descobrir as categorias naturais que constituem a base para os sintomas psiquiátricos que configuram as queixas dos pacientes e as observações dos psiquiatras e psicólogos. Entretanto, muito do que se tem feito se restringe à confirmação de descobertas pré-existentes e à investigação de sintomas (e suas combinações) das classificações categoriais tradicionais (Fusar-Poli et al., 2019).

Outro aspecto importante é que a psiquiatria transdiagnóstica é uma linha de pesquisas em desenvolvimento, de modo que não há diretrizes suficientemente comprovadas - e aprovadas - para a utilização rotineira de suas descobertas, no tratamento psiquiátrico.


Imagem: Superposição de critérios para comportamento agressivo-impulsivo-reativo (AIR) By Eyoungstrom - Own work, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=112285313

Referências bibliográficas

Dagleish J et al.   Transdiagnostic Approaches to Mental Health Problems    Journal of Consulting and Clinical Psychology 2020 Vol. 88, No. 3, 179–195 http://dx.doi.org/10.1037/ccp0000482 

Fusar-Poli P et al.   Transdiagnostic psychiatry: a systematic review   World Psychiatry. 2019 Jun;18(2):192-207. doi: 10.1002/wps.20631. PMID: 31059629 PMCID: PMC6502428 DOI: 10.1002/wps.20631

Kotov R et al. (2017). The Hierarchical Taxonomy of Psychopathology (HiTOP): A dimensional alternative to traditional nosologies. J  Abnormal Psychol, 126(4), 454–477  https://doi.org/10.1037/abn0000258

Kotov R et al.   The Hierarchical Taxonomy of Psychopathology (HiTOP): A Quantitative Nosology Based on Consensus of Evidence    Annual Review of Clinical Psychology, 2021 Vol. 17:83-108 (Volume publication date May 2021) https://doi.org/10.1146/annurev-clinpsy-081219-093304


quinta-feira, 18 de setembro de 2025

QUAL O TRATAMENTO DO AUTISMO (TEA)?


Quais as intervenções possíveis para tratar os sintomas do TEA?

1. Esta postagem está em desenvolvimento e, nos próximos dias, mais tratamentos serão acrescentados.

2. A leitura destes tópicos não substitui a leitura crítica dos artigos originais citados - sobretudo no caso de profissionais de saúde que usem este texto como fonte de informação.

3. As conclusões de cada tópico estão realçadas, no texto, para facilitar a consulta.

4. Comentários e sugestões são bem vindos, no Blog.


MEDICAMENTOS E SUPLEMENTOS ALIMENTARES

Numa meta-análise em rede envolvendo 125 pesquisas aleatorizadas e controladas (RCT = randomized controlled trial) em crianças e adolescentes e 18 RCT em adultos, concluiu-se que as seguintes medicações poderiam vir a ser úteis (comparados a placebo), no controle de pelo menos um sintoma nuclear: aripiprazol, atomoxetina, bumetanida e risperidona, em crianças e adolescentes e fluoxetina, fluvoxamina, oxitocina e risperidona, em adultos. Apesar de alguns indícios de melhoras com carnosina, haloperidol, ácido folínico, guanfacina, ácidos graxos ômega-3, probióticos, sulforafano, tideglusibe e valproato, estes últimos resultados foram imprecisos e sem robustez. PARA TODAS AS SUBSTÂNCIAS REVISADAS NESTA META-ANÁLISE, A CONFIANÇA (UM ÍNDICE DA CONFIABILIDADE DOS RESULTADOS PARA ESTE TIPO DE META-ANÁLISE) FOI MUITO BAIXA OU BAIXA, À EXCEÇÃO DA OCITOCINA, PARA A QUAL FOI MODERADA. Ou seja, NÃO há comprovação suficiente para o uso rotineiro destas medicações e suplementos (Siafis et al., 2022). Outras meta-análises, inclusive, não observaram efeitos significativos da ocitocina nos sintomas do TEA (Martins et al., 2022).

ABA ("APPLIED BEHAVIOR ANALYSIS") - ANÁLISE COMPORTAMENTAL APLICADA

A análise comportamental aplicada (ABA) é um dos tratamentos mais tradicionais para os sintomas do TEA. O funcionamento segue as bases da terapia comportamental, identificando os gatilhos dos comportamentos-alvo (estímulos discriminativos) e as consequências que mantêm a presença do comportamentos-alvo (reforçadores). Comportamentos-alvo são os tanto comportamentos que se quer extinguir ou, pelo menos, diminuir sua frequência (como, por exemplo, acessos de raiva ou recorrer a estereotipias, em situações de estresse) quanto aqueles que se quer manter, aumentar ou modelar (por exemplo, ensinar a pessoa atividades de higiene e a comer de forma variada e saudável (naqueles que, rigidamente, querem consumir somente um número limitado de alimentos). Há vários estudos demonstrando o funcionamento da ABA (e.g. Eckes et al., 2023), porém há pesquisas que sugerem que o tratamento depende de características prévias dos pacientes (i.e., comportamentos que apresentavam antes do tratamento) e, portanto as técnicas devem ser individualizadas (Cerasuolo et al., 2022).


TERAPIAS ALTERNATIVAS

EQUOTERAPIA 

Revisões sistemáticas das pesquisas sobre este tipo de tratamento ou não encontraram eficácia ou detectaram melhoras em alguns aspectos (por exemplo na cognição social, comunicação, irritabilidade e hiperatividade) mas não em outros (consciência social, maneirismos, motivação, letargia, estereotipias e fala inadequada). Os estudos, conduzidos com pequeno número de indivíduos, são muito heterogêneos quanto à forma de tratamento (e sem medidas adequadas para mensurar os resultados), além de não terem comparação com outros tratamentos, com placebo ou com evolução natural, NÃO PERMITEM CONCLUSÕES DEFINITIVAS (e.g. Ningkun et al., 2023; Sissons et al., 2022; Trzmiel et al., 2018 )

PROBIÓTICOS

Fala-se muito, principalmente nos meios não especializados, sobre as relações entre o trato gastrointestinal e vários transtornos psiquiátricos e isto inclui o uso de probióticos em seu tratamento. O fato é que, apesar de algumas evidências, OS RESULTADOS SÃO, AINDA, INSUFICIENTES PARA SE RECOMENDAR ESTE TIPO DE ABORDAGEM (Xiao et al., 2023; Siafis et al., 2022), inclusive para autistas.

DIETA SEM GLÚTEN E CASEÍNA

Crianças autistas têm uma incidência aumentada de problemas gastrintestinais (McElharon et al., 2014) e alguns pais consideram que seus filhos sejam alérgicos aos componentes glúten (proteína encontrada no trigo e outros cereais) e caseína (proteína encontrada no leite). Com base nisto, alguns propuseram uma dieta livre de glúten e caseína, como tentativa de melhorar as manifestações do autismo. Entretanto,  REVISÕES SISTEMÁTICAS SOBRE A QUESTÃO NÃO ENCONTRARAM EVIDÊNCIAS DE QUE ESTA DIETA SEJA ÚTIL - AO CONTRÁRIO, PODERIA LEVAR À FALTA DE NUTRIENTES ESSENCIAIS (Keller et al., 2021)

TRANSPLANTE DE MICROBIOTA FECAL

A ideia do transplante de microbiota fecal surgiu com base na observação de uma frequência acima da média de distúrbios gastrintestinais, em pessoas com TEA e alguns estudos detectaram diferenças na flora intestinal, que poderiam estar associados a estes distúrbios. Entretanto, esta observação não permite concluir que eles tenham um efeito causal ou sejam consequência do transtorno (por exemplo, dos hábitos alimentares rígidos) e OS ESTUDOS ENVOLVENDO O PROCEDIMENTO, COMO TENTATIVA DE MELHORAR OS SINTOMAS, NÃO PERMITEM CONCLUSÕES DEFINITIVAS, por serem muito heterogêneos, não terem um número suficiente de pacientes envolvidos e outras deficiências metodológicas (He et al., 2023).


ESTIMULAÇÃO MAGNÉTICA TRANSCRANIANA (EMT)

A estimulação magnética transcraniana consiste da aplicação de um campo magnético ao cérebro (como um todo ou em regiões específicas). Como aos campos magnéticos correspondem campos elétricos, acredita-se que o surgimento de correntes elétricas, no cérebro, levaria a alterações na neurotransmissão, que poderiam levar a melhora de transtornos psiquiátricos. A ideia se baseou na eficácia da eletroconvulsoterapia, onde se aplicam correntes elétricas no cérebro, através de sua passagem através do crânio. A EMT se mostrou eficaz em depressões, sobretudo se combinada a medicações antidepressivas. Numa meta-análise (Smith et al., 2023), observou-se efeitos positivos sobre sintomas de hiperatividade, irritabilidade, letargia/retraimento social, comportamentos compulsivos, comportamentos ritualísticos/resistência a mudanças ("sameness behavior") e comportamentos estereotipados. Entretanto, por questões metodológicas, os autores referem que ainda há necessidade de estudos melhores para que se possa recomendar a EMT como tratamento para TEA.


CANABINOIDES

A maconha (Cannabis) contem cerca de 500 substâncias diferentes, das quais cerca de 100 são canabinoides. As mais conhecidas são o tetra-hidro-canabinol (THC), seu derivado canabinol (CBN) e o canabidiol (CBD), mas também outras têm sido estudadas no tratamento potencial de transtornos psiquiátricos como, por exemplo, a canabidivarina, (CBDV), uma substância análoga do canabidiol, mas com uma cadeia lateral mais curta. A proposta de uso destas substâncias como tratamento para as mais diversas doenças tem sido muito propagado e, infelizmente, muitas vezes de modo que a ciência não justifica. Sendo psiquiatra, frequentemente se é convidado para palestras sobre os benefícios da "maconha medicinal" e do canabidiol. De 17 referências, na plataforma Pubmed, nos últimos 5 anos, contendo usando como procura os termos "cannabis" e "autism" revisões sistemáticas sobre os eventuais benefícios destas drogas no TEA, 14 abordam se referem a estudos e são unânimes na conclusão de que, apesar de alguns benefícios potenciais, AINDA NÃO HÁ COMPROVAÇÃO SUFICIENTE, ATRAVÉS DE PESQUISAS COM METODOLOGIA SUFICIENTEMENTE BOA, DE QUE CANNABIS OU DERIVADOS DE CANNABIS SEJAM BENÉFICOS NO TRATAMENTO DO TEA.


Referências


Batalla A et al. The Impact of Cannabidiol on Human Brain Function: A Systematic Review.  Front Pharmacol. 2021 Jan 21;11:618184. doi: 10.3389/fphar.2020.618184. eCollection 2020.PMID: 33551817 

de Bode N et al. Clin Psychol Rev. 2025 Jun;118:102581. doi: 10.1016/j.cpr.2025.102581. Epub 2025 Mar 29. The differential effects of medicinal cannabis on mental health: A systematic review. PMID: 40186931 

Cammà G et al. Therapeutic potential of minor cannabinoids in psychiatric disorders: A systematic review.   Eur Neuropsychopharmacol. 2025 Feb;91:9-24. doi: 10.1016/j.euroneuro.2024.10.006. Epub 2024 Nov 13. PMID: 39541799 

Cerasuolo et al. Examining Predictors of Different ABA Treatments: A Systematic Review  Behav Sci (Basel). 2022 Aug 4;12(8):267. doi: 10.3390/bs12080267. PMID: 36004838 PMCID: PMC9405151 DOI: 10.3390/bs12080267

Chhabra M et al.   Cannabinoids for Medical Purposes in Children: A Living Systematic Review.  Acta Paediatr. 2025 Sep;114(9):2148-2159. doi: 10.1111/apa.70140. Epub 2025 May 28. PMID: 40437694 

Eckes et al.  Comprehensive ABA-based interventions in the treatment of children with autism spectrum disorder - a meta-analysis BMC Psychiatry. 2023 Mar 2;23(1):133 PMID: 36864429 PMCID: PMC9983163 DOI: 10.1186/s12888-022-04412-1

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Sissons et al.    Calm with horses? A systematic review of animal-assisted interventions for improving social functioning in children with autism     Autism 2022 Aug;26(6):1320-1340. doi: 10.1177/13623613221085338. Epub 2022 Apr 11.  PMID: 35403450 

Smith et al. (2023)    Treatment Response of Transcranial Magnetic Stimulation in Intellectually Capable Youth and Young Adults with Autism Spectrum Disorder: A Systematic Review and Meta-Analysis   Neuropsychol Rev. 2023 Dec;33(4):834-855. doi: 10.1007/s11065-022-09564-1. Epub 2022 Sep 26.

Tzmiel et al. (2018)   Complement Ther Med   Equine assisted activities and therapies in children with autism spectrum disorder: A systematic review and a meta-analysis   PMID: 30670226 DOI: 10.1016/j.ctim.2018.11.004  2019 Feb:42:104-113. doi: 10.1016/j.ctim.2018.11.004. Epub 2018 Nov 5.

Imagem: Autistic boy receiving ABA therapy autora: Kate Blais for U.S. Air Force., domínio público, via Wikimedia Commons

sábado, 13 de setembro de 2025

O QUE É AUTISMO - TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA? (SEGUNDA PARTE)




Em 1943, o psiquiatra austríaco Hans Asperger publicou um estudo de quatro casos de crianças cuja característica principal era um profundo prejuízo do contato com o meio-ambiente, sobretudo com as pessoas (principalmente indiferença, por vezes chegando ao ponto de as tratar como seres inanimados). A relação com objetos também estava prejudicada, indo de uma intensa repulsa ao contato com alguns - por exemplo, certos tecidos de roupas  - até o fascínio exagerado por outros, levando-os a ficarem por longo tempo os manipulando ou, em outros casos, os acumulando (não por sua utilidade, mas por suas características externas como, por exemplo, coleções de caixas de fósforos). Diferentemente de Kanner (veja publicação anterior), Asperger não considerava essencial a presença  de dificuldades precoces com a linguagem (apesar de poderem estar presentes com alguma frequência). O conceito que se depreende do artigo de Asperger é de um quadro muito menos homogêneo do que o descrito por Kanner - e muito próximo da definição atual do transtorno do espectro autista (TEA). 

Asperger inicia o artigo fazendo longas considerações sobre a questão da individualidade de cada caso (ou seja, não é possível encaixar todas as características num dado diagnóstico), mas termina concluindo que, apesar da existência desta complexidade, há necessidade de se encontrar aspectos repetidos entre os indivíduos, que levem a uma classificação para melhor poder estudar os casos. Cita diversos autores que estabeleceram classificações de personalidade (Asperger considera o autismo um transtorno de personalidade - ou "psicopatia", como se chamava antigamente) e conclui que nenhum deles cobre as características que encontrou em seus pacientes (o que não era totalmente verdade, como escrevi na primeira parte desta postagem).

Asperger descreve apenas quatro casos, mas dá muitos detalhes sobre cada um deles e, ao final do artigo, diz ter encontrado mais de duzentas crianças com as características da "psicopatia autista", ao longo de dez anos. Comenta, na discussão, que as características individuais são muito variáveis, incluindo o grau de comprometimento do contato e o nível intelectual - abrindo o diagnóstico, assim, para o leque do que hoje em dia se chama "transtorno do espectro autista" (TEA) ou mesmo para a questão da "neuroatipicidade", hoje em dia tão comentada. Em relação à constância de características, cita que as crianças se mostram diferentes desde os dois anos de idade, pelo menos - o que também está incluído nos critérios diagnósticos atuais. As dificuldades no "aprendizado das simples tarefas da vida prática" e com a "adaptação social", na criança pequena, teriam a mesma origem, segundo Asperger, das dificuldades posteriores com aprendizado e comportamento, na criança em idade escolar, das dificuldades com trabalho e do desempenho atípico, no jovem - e que se relacionam às dificuldades conjugais e conflitos sociais do adulto. Asperger comenta que, para quem aprendeu a reconhecer pessoas desse molde, reconhece-as de imediato, quando entram no ambulatório, através de seus comportamentos iniciais ou da primeira palavra que dizem. Seu olhar também seria característico que, ao invés de se dirigir ao ambiente e às pessoas, se dirigiria para longe ou para o interior da pessoa. Elas também não fariam contato com o olhar, ao falarem com outra pessoa. Porém, o olhar destas crianças se ergueria e se expressaria de modo resoluto, quanto têm em mente fazer alguma "maldade" . (Interessantemente, já na descrição dos casos, Asperger descreve as crianças autistas como inerentemente más.) 

O artigo comenta também o alto desempenho dos autistas inteligentes e sua originalidade (por exemplo, crianças de 6 a 7 anos dando definições excêntricas das diferenças entre objetos, quando questionadas, em testes de inteligência. Assim, a diferença entre uma escada e uma escada e uma escadaria seria que a primeira sobe de forma pontuda, enquanto a segunda sobe em anéis, serpenteando. Por trás destas manifestações estaria a capacidade das crianças autistas de verem as coisas e processos do ambiente através de novos pontos de vista (itálico meu). E estes pontos de vista seriam, por vezes, espantosamente maduros, muito além do que se espera em crianças da mesma idade. No segundo caso do artigo (Harro L.), por exemplo, além da originalidade de definições de palavras e diferenças entre coisas, o menino possui uma habilidade de aritmética que, além de estar acima do esperado pela idade (8 anos e meio), se manifesta através de modos de calcular originais e incomuns. Por exemplo: 52 - 25 = 27, porque "2 vezes 25 é 50, mais 2 é 52; e 25 mais 2 é 27".

Em relação à interação social, Asperger comenta que as dificuldades provém do "estreitamento" (Einengung) da relação do autista com o ambiente, estando ausente o sentimento de vinculação com a família e, assim, os principais conflitos ocorreriam dentro da família. Novamente, Asperger se refere aos atos maldosos dessas crianças, que conseguiriam descobrir o que de mais desagradável e doloroso conseguem causar mas (ao mesmo tempo), chegando por vezes a pensamentos ou atos "sádicos" (sic), mas lhes faltaria a sensibilidade para perceber o quanto isto afeta os outros. Na presença da família, andam pelo ambiente sem interagir ou interagem com objetos de forma estereotipada, agrupando blocos de brinquedo de montar de acordo com a cor, formato ou tamanho, ao invés de construir algo com eles. De modo geral, seguem seus próprios impulsos, sem se importar com o ambiente. A família pode evitar conflitos simplesmente deixando a criança seguir seu próprio caminho, ocorrendo problemas apenas nas tarefas do dia-a-dia, como levantar, lavar-se, vestir-se, comer. Consequentemente a estas características, surgem dificuldades na escola, onde a criança precisa apresentar obediência. No entanto, Asperger comenta que a tendência das crianças autistas é melhorar com a idade e apenas uma minoria não consegue nenhuma adaptação social, sobretudo aquelas que têm deficiência intelectual. Isto, porque a dificuldade dos autistas está na interação social, porém podem ter um excelente desempenho profissional (sobretudo em áreas extremamente especializadas, como matemática, áreas técnicas, química e mesmo funcionários), o que poderia ser, segundo o autor, uma "hipertrofia" compensatória de suas deficiências. Assim, estes indivíduos poderiam ter uma inserção social suportável ou mesmo de excelência. Desta forma, também teriam seu lugar no tecido do organismo social.

Referência: Asperger, H. (1944) Die “Autistischen Psychopathen” im Kindesalter. [The “Autistic Psychopaths” in Childhood]. Archiv für Psychiatrie und Nervenkrankheiten, 117, 76-136. https://doi.org/10.1007/BF01837709

Imagem: A boy looking at a molecule model  Poindexter Propellerhead, CC BY-SA 3.0 <http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/>, via Wikimedia Commons




terça-feira, 26 de agosto de 2025

VERDADE E MENTIRA EM PSICOLOGIA


VOCÊ CONFIA NAS PESQUISAS DE PSICOLOGIA?


1. Vinte e quatro estudantes universitários foram divididos em dois grupos : uma parte deles simulava guardas prisionais e a outra parte, prisioneiros.

Após algum tempo, os guardas, apesar de não terem sido orientados para tanto, começaram a apresentar espontaneamente comportamentos tão agressivos que o estudo teve de ser interrompido.

As conclusões deste estudo foram citadas em muitos livros de Psicologia.

FALHAS

Em entrevistas mais recentes com os participantes, estes relataram que os guardas tiveram instruções bastante completas sobre como maltratar os prisioneiros, por exemplo através de mantê-los em situação de tédio ou forçá-los a retirar espinhos de cobertores sujos que haviam sido jogados no mato.

2. Dois grupos de voluntários eram solicitados a ficar esperando para começar a resolver um quebra-cabeças, tendo ao lado uma vasilha com rabanetes e uma vasilha com cookies. Um dos grupos era orientado a só poder se servir dos rabanetes e o outro podia se servir dos cookies.

Na hora de resolver os quebra-cabeças, o grupo que pode se servir de cookies demorou muito mais tempo para desistir. Aparentemente, a necessidade de se controlar e NÃO consumir os cookies trouxe uma fadiga ao grupo que só podia comer os rabanetes, o que levou a uma teoria de que o havia sido "depletado" o ego das pessoas que precisavam exercer força de vontade e auto-controle para não comer os cookies.

Esta pesquisa (4) foi citada mais de três mil vezes em outros estudos e livros e em 2010 foi feita uma meta-análise* de 83 estudos e 198 experimentos sobre depleção do ego e que confirmou seus resultados.

FALHAS


Numa revisão do grande estudo de 2010, observou-se que ele incluía apenas resultados publicados e pesquisas que encontraram resultados negativos não haviam sido incluídas. E as pesquisas incluídas na meta-análise muitas vezes incluíam resultados que não podiam ser comparados uns aos outros: por exemplo, num dos estudos concluía que as pessoas com ego depletado dariam mais dinheiro a uma instituição de caridade e outro concluía que as pessoas com ego depletado ficariam menos tempo ajudando um estranho. Finalmente, quando se refez a análise estatística com técnicas mais modernas, não se observaram resultados significativos.

3) Crianças com 5 anos de idade eram orientadas a aguardar quinze minutos, tendo na frente um marshmallow. Se esperassem os 15 minutos, ganhariam este marshmallow e mais um segundo. Se comessem o marshmallow antes dos 15 minutos, não receberiam o segundo.

Reexaminadas após dez e vinte anos, as crianças que tinham conseguido esperar os quinze minutos, apresentavam menos problemas comportamentais e melhor desempenho nos testes para admissão em faculdades.

FALHAS

Todas as crianças testadas eram de pais de alto nivel sócio-cultural. A repetição desta pesquisa num grande grupo de crianças de quatro anos com mães que não tinham feito faculdade mostrou um ganho muito menor nos comportamentos sócio-emocionais, na adolescência e a correlação era extremamente fraca (0,1, numa escala onde o mínimo e 0 e o máximo é 1). Além disto, a maior parte dos ganhos se relacionava à capacidade de esperar pelo menos 20 segundos (ou seja, saber esperar vários minutos, como no estudo original, não apresentava vantagens sobre conseguir esperar apenas 20 segundos).
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*Nota: estudos de meta-análise são estudos que procuram levantar todas as pesquisas feitas sobre o assunto em questão, que são sistematicamente analisadas e, em seguida, faz-se também uma análise estatística com o objetivo de se obter uma conclusão geral.




REFERÊNCIAS

(1) Wikipedia Stanford prison experiment https://en.wikipedia.org/wiki/Stanford_prison_experiment , acessado em 20/07/2018

(2) Blum B The lifespan of a lie Medium 7 de junho de 2018 https://medium.com/s/trustissues/the-lifespan-of-a-lie-d869212b1f62 , acessado em 20/07/2018

(3) Engber D Everything is crumbling Slate 6 de março de 2016 http://www.slate.com/articles/health_and_science/cover_story/2016/03/ego_depletion_an_influential_theory_in_psychology_may_have_just_been_debunked.html , acessado em 20/07/2018

(4) Baumeister RF, Bratslavsky, Muraven M, Tice TM Ego-depletion: is the active self a limited resource? Journal of Personality and Social Psychology (1998) v. 74, p. 1252-65 https://faculty.washington.edu/jdb/345/345%20Articles/Baumeister%20et%20al.%20(1998).pdf , acessado em 20/07/2018
(5) Resnik B The “marshmallow test” said patience was a key to success. A new replication tells us s’more.   Vox  6 de junho de 2018   https://www.vox.com/science-and-health/2018/6/6/17413000/marshmallow-test-replication-mischel-psychology, acessado em 20/07/2018 

(6) Watts TW, Duncan GJ, Quan H    Revisiting the Marshmallow Test: A Conceptual Replication Investigating Links Between Early Delay of Gratification and Later Outcomes  Psychological  Science 2018   v. 29, p; 1159-77   http://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/0956797618761661 , acessado em 20/07/2018

(7) Carter EC; McCullough ME   Publication bias and the limited strength model of self-control - has the evidence for ego-depletion been overestimated?    Frontiers of Psychology  July 2014   v. 5, artigo 823   http://www.psy.miami.edu/ehblab/PubBiasSelfControlEgo.pdf , acessado em 20/07/2018


Ilustração: TORTURA By CGP Grey - 2006-08-20 - Road Trip - Day 29 - United States - Arizona - The Thing - Torture - Woman 4888999825, CC BY 2.0,

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

O QUE É AUTISMO - TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA? (PRIMEIRA PARTE)




Segundo revisões da história do conceito de autismo, a primeira pesquisadora a descrever crianças com características de autismo foi a psiquiatra soviética Grunya E. Sucharewa, em 1926; porém, ela chamou os quadros destas crianças de "psicopatia esquizoide". O termo "autismo" já tinha sido mencionado, em 1911, pelo psiquiatra suíço E. Bleuler, mas noutro contexto - para descrever o mundo isolado e ensimesmado em que viviam os portadores de esquizofrenia. Porém, a história do conceito como o conhecemos hoje se inicia com L. Kanner, que publicou, em 1943, os casos de 11 crianças. A seguir, um breve resumo, porém é aconselhável ler o artigo original, onde aparecem muito mais detalhes.

Caso 1: examinado inicialmente aos 5 anos de idade, tinha história de seletividade alimentar, restrição de perguntas a alguns assuntos específicos (e formulação das perguntas numa única palavra), facilidade em decorar o alfabeto, nomes e faces e mesmo textos inteiros. Indiferença em relação aos pais e parentes. Desinteresse por coisas que normalmente despertam entusiasmo nas crianças como, por exemplo, alguém vestido de Papai Noel. Não demonstrava afeto quando acarinhado, não prestava atenção se alguém entrava ou saía, não demonstrava alegria em ver os pais ou um amiguinho e nem tomava a iniciativa para brincar com alguém. Parecia mais feliz quando estava sozinho e raramente ia até alguém que o chamasse. Aos dois anos, muito interessado em brinquedos com blocos de girar, frigideiras e outros objetos redondos. Adquiriu o hábito de balançar a cabeça de um lado para o outro e parecia estar sempre pensativo. Repetição das mesmas palavras, frases, disposição de objetos. Entendimento apenas literal dos mandos. Dificuldades no uso correto no uso de pronomes pessoais.

Caso 2: Inicialmente examinado aos 6 anos, tinha histórico de ser autossuficiente, não participar de jogos interativos, muito medo de objetos mecânicos; no começo da vida não se interessava por ninguém, depois passou a aceitar um pouco melhor a presença de pessoas, mas no geral as percebia como interferência em suas atividades. Aprendeu muitas canções já aos dois e meio anos de idade. Dificuldade em pedir as coisas e dificuldade em não recebê-las quando as quer. Dificuldades no uso correto de pronomes pessoais. Quando mãe ía pegá-lo em seus braços, nunca assumia postura de expectativa. Ou evitava outras crianças ou se metia no meio delas de forma agressiva.

Caso 3. Inicialmente, foi considerado surdo, por não falar ou responder perguntas. Levado para internação, concluíram que provavelmente ouvia, porque obedecia a ordens simples", como "sente-se" ou "deite-se". Parecia inteligente, demonstrando curiosidade relacionada aos instrumentos usados para examiná-lo. Mas, não prestava atenção a conversas ao seu redor e fazia ruídos, mas não falava palavras inteligíveis. Pela descrição da mãe, chegou a imitar os sons da fala mas, depois, parou. No consultório do psiquiatra, brincava com os brinquedos, mas não prestava atenção às pessoas, no recinto. Emitia ruídos ininteligíveis. Num retorno, aos 4 anos e 11 meses de idade, ficou persistentemente ligando e desligando as luzes. Não dizia à mãe, se queria algo, mas se mostrava furioso, até que ela adivinhasse o que desejava.

Caso 4. Foi levado à clínica aos 5 anos de idade, para avaliação psicométrica, pois se achava que tinha deficiência intelectual - havia estado num jardim de infância particular, onde sua fala incoerente, incapacidade de adaptar-se e acessos de raiva levaram a esta suspeita. Aos 3 anos, havia decorado 37 canções. No primeiro ano de vida apresentava muitos vômitos, o que levou a várias trocas nas fórmulas com que o alimentavam. Estava sempre ocupado com algo, com vivacidade, mas quando se falava com ele, continuava em sua atividade. Kanner observa que não parecia desobediente, porém extremamente distante. Parecia muito satisfeito com suas atividades, a não ser que alguém interferisse persistentemente com o que estava fazendo. Neste caso, primeiro tentava se desviar da pessoa e, se não conseguissem tinha acessos de raiva. Manuseava adequadamente vários objetos e passou também a falar frases soltas, com um bom vocabulário, mas que não aparentavam que pretendesse comunicar-se. Repetia frases ditas por outras pessoas e decorava trechos com muita facilidade. Falava de si sempre na segunda pessoa. Comportava-se como se as pessoas não existissem e nunca olhava para suas faces. Frequentemente andava em círculos, masturbava-se com frequência e apresentava vários comportamentos repetitivos.

Caso 5.  Foi levada à clínica aos 8 anos e 4 meses. Apresentava vocabulário normal aos 2 anos de idade, mas sempre com dificuldades para com as palavras estruturar sentenças; soletrava, escrevia e lia bem, porém mantinha a dificuldade de expressão oral. Hábitos rígidos e repetidos, repetia frases, usava repetidamente determinados objetos. Falava de si na segunda pessoa e se referia à mãe com "eu", Desatenta ao ponto de parecer que não ouvia. No exame psiquiátrico não mostrava nenhuma vontade de interagir nem contato afetivo. Picada com uma agulha, disse "machuca", mas a palavra não era dirigida a ninguém.  Brincava com a própria mão como se fosse um brinquedo. Sua manipulação de objetos era repetitiva. Seus desenhos, estereotipados e sem imaginação. Interrompia conversas dos outros com palavras ou frases estereotipadas.

Caso 6. Foi levada à clínica aos 11 anos de idade. Morava numa instituição para deficientes intelectuais desde os 5 anos de idade, mas se percebeu que não tinha deficiência intelectual. Não prestava atenção no que lhe falavam, mas parecia entender tudo o que esperavam dela. Não interagia com as pessoas, mas se cuidava, montava quebra-cabeças, nos quais persistia obsessivamente até completar a figura (o que conseguia, mesma que  as peças de dois quebra-cabeças diferentes fossem misturadas). Testada, apresentou um Q.I. de 94.  Respondia as perguntas sem olhar para a pessoa, olhando para o  vazio. Quando as crianças se juntaram em torno do piano, ela pareceu não perceber; não prestava atenção à música, mergulhada em seu mundo à parte. Quando as crianças se retiraram, pareceu não perceber e nem mudou de posição.

Caso 7. Foi encaminhado à clínica aos 3 anos e 2 meses. Sua mãe o descrevia como sempre lento e quieto.  Achou-se, por um tempo, que fosse surdo, porque não apresentava nenhuma mudança de expressão quando se falava com ele e nem tentava falar. Aceitava líquidos somente num recipiente todo de vidro e, na clínica, chegou a ficar 3 dias sem aceitar líquidos, porque foram oferecidos num recipiente metálico. Tinha muitos medos, incluindo água corrente e queimadores de gás. Incomodava-se com quaisquer mudanças, ficando temperamental e chegando a chorar. Gostava de puxar persianas para cima e para baixo, abrir e fechar portas, rasgar caixas de papelão em pequenos pedaços e ficar horas se divertindo com eles. Entrou no consultório sem olhar para as pessoas e  logo se dirigiu a um tabuleiro de Seguin, colocando as formas em seus lugares, corretamente. Quando se retirou o tabuleiro, ficou perturbado, imediatamente percebendo sua ausência mas, quando o colocaram de volta, não se importou mais com ele. Quando se aquietou, ficou pulando, com uma expressão extática. Não respondia, quando chamado ou quando se dirigia uma palavra a ele. Nunca sorria. Por vezes emitia sons desarticulados, cantarolando. Frequentemente levava objetos aos lábios.

Caso 8. Levado à clínica aos 3 1/2 anos, a mãe descrevia que, gradualmente, desenvolveu interesses rígidos e só se dedicava a eles. falava deles. Se não pudesse ter acesso a eles, mostrava-se inquieto. Também demonstrava um interesse muito maior por objetos. Demorou para falar, nunca fazia perguntas com a entonação característica, repetia muito frases - dificilmente falava uma sentença uma única vez, chegando a fazer 50 repetições. Só raramente fala de suas experiências. Gosta de brincar sozinho, montando coisas como, por exemplo, montando um carrinho com caixas. Não gostava que alguém se aproximasse. Punha várias coisas na boca e chegaram a ser encontrados pedregulhos em suas fezes e, uma vez, aspirou algodão, requerendo traqueotomia. Entrando no consultório, logo viu um trem de brinquedo, pegou-o e ficou conectando e desconectando repetidamente os vagões, dizendo "mais trem, mais trem, mais trem". Também repetidamente contava as janelas dos vagões, em voz alta. Levado a uma sala sem trens para fazer o teste de Binet, foi difícil convencê-lo a fazer e, quando o completou, pareceu ao psiquiatra que o fez de maneira a se livrar o mais rápido possível. Seu QI foi de 142. Numa descrição enviada pela mãe quando tinha cinco anos, foi descrito como "lobo solitário", permanecendo sozinho para brincar e só se dirigindo a um adulto quando queria ouvir uma história. Lia histórias simples para si mesmo. Tinha muitos medos de ferimentos e se assustava muito se alguém, por acidente, lhe cobrisse o rosto. Foi levado novamente ao psiquiatra aos 11 anos e, durante a entrevista, manteve-se muito sério, porém com bastante pressão do discurso, perguntando obsessivamente sobre janelas, sombras, quartos escuros. Por vezes, respondia às perguntas em forma de barganha: "Você responde uma pergunta minha e eu respondo uma pergunta sua." As definições que dava das coisas eram sempre descrições muito específicas como, por exemplo, üm balão é feito de borracha e contém ar e às vezes contém gás e às vezes pode subir no ar e às vezes podem ser segurados; quando se faz um furo neles, estouram e se as pessoas os apertam, estouram. Está certo?"

Caso 9. Levado à clínica com 4 e meio anos, tinha um histórico de, com um ano e meio de idade, conseguir distinguir 17 sinfonias. Passou a interessar-se também pela manipulação repetitiva de objetos, como, por exemplo, rodopiar cilindros ou refletir a luz em vários espelhos. Parecia sempre distanciado das pessoas à sua volta, falava de si na segunda pessoa. Quando alguém jogou no chão um almanaque que estava lendo e pisou em cima, ele tentou remover o pé da pessoa como se fosse um objeto e não parte de uma pessoa. Nas conversas, somente reproduzia o que havia escutado, jamais emitia algo que fosse originalmente seu. Quando num grupo de pessoas, não olha para elas. Na escola se mantém sempre afastado das outras crianças. Se houvesse uma atividade musical, postava-se na frente de todos e começava a cantar. Nunca inicia uma conversação. Quando entrou no consultório do psiquiatra, não olhou para ninguém que estava lá. Tudo o que fazia era muito repetitivo.

Caso 10.  Avaliado aos 2 anos e 4 meses de idade. Rolava de um lado para o outro, antes de adormecer. Se não sabem o que quer, fica berrando. Entrando no consultório, ficou andando de um lado para o outro, sem rumo. Não estabelecia nenhum contato entre dois objetos, a não ser quando era para rabiscar. Não respondia à maioria dos comandos simples. Ao final do quarto ano de vida, seu vocabulário melhorou muito. Seu contato afetivo era pouco e somente com poucas pessoas. Usava o pronome da segunda pessoa para referir-se a si mesmo. Sempre empurrava para o lado o primeiro pedaço de seus alimentos. Sua rotina tinha de ser rígida, qualquer mudança o deixava em pânico. Possuía um vocabulário excelente, mas só repetia as sentenças ditas por outros, não produzindo nada original. Tinha excelente memória e conhecia de cor rezas em várias línguas e poemas. Aos quatro anos e meio, passou a usar os pronomes mais adequadamente. Precisava de um ambiente muito estável e, nas avaliações, conseguia isto mantendo porta e janela fechadas. Se sua mãe abria, primeiramente ele logo as fechava e, se abrisse de novo, irrompia em lágrimas. Ficava muito incomodado se visse algo incompleto. Uma boneca de duas estava sem chapéu e ele o ficou procurando pela sala inteira. Quando trouxeram e colocaram nela o chapéu, imediatamente perdeu o interesse por ela. Aos cinco anos e meio, passou a ter um bom domínio dos pronomes.

Caso 11. Levada à clínica aos 7 anos e 4 meses de idade, tinha história de não conseguir lidar com abstrações: não entendi as brincadeiras das outras crianças, não queria ouvir histórias, ficava andando e falando sozinha. Gostava muito de animais e, por vezes, os imitava. Com 1 ano de idade, falava 4 palavras, mas não houve progresso posterior da fala e chegaram a achar que fosse surda. Por causa de suas dificuldades, também se pensou numa deficiência intelectual porém, os médicos que a viam, achavam que sua expressão facial era de uma pessoa inteligente. Aprendeu a falar aos 5 anos, mas suas frases não se relacionavam à situação do momento ou se relacionavam a ela de uma forma metafórica. Seu comportamento também era diferente do das outras crianças: quando elas estavam sendo ensinadas a cuidar de flores, bebeu a água e comeu as plantas. Tinha um vocabulário muito rico, aprendendo especialmente bem as classificações dos animais. Não usava os pronomes corretamente, mas era correta nos tempos e nos plurais. Dificuldades para entender o significado de números. Muito medo de barulho, tinha tanto medo do aspirador de pós que se afastava até do quarto onde ste ficava guardado. Se fosse ligado, tampava as orelhas com as mãos e corria para a garagem. Examinada por uma psicóloga aos 7 anos, mantinha uma relação distante e, mesmo quando restringida fisicamente, afastava o objeto ou a parte do corpo que a restringia, mas em nenhum momento pedia para que a soltassem ou pedia alguma ajuda. Seu discurso continuava se restringindo a repetir frases, raramente emitindo algo original. Decorava o nome das crianças com quem convivia, mas não se relacionava com elas. Levada para o playground, demonstrou medo e correu para seu quarto. Conseguia ficar longos períodos brincando sozinha com blocos de montar, desenhar ou ficar olhando gravuras.

ALGUNS DOS COMENTÁRIOS RELEVANTES DE KANNER SOBRE SEUS CASOS

A característica mais evidente, fundamental e característica do transtorno seria uma incapacidade das crianças, desde o início de suas vidas, de se relacionarem do modo habitual com pessoas e situações.

Esta dificuldade de interação com pessoas se caracteriza por dificuldades graves na comunicação,  incluindo severas limitações da linguagem (que podem, lentamente, melhorar, com a passagem do tempo) e a necessidade de uma regularidade ininterrupta no ambiente, de modo que uma série de estímulos externos (sons ou interferência nas atividades) são vivenciados com extremo desconforto e, como consequência, segundo Kanner, na criança predominariam comportamentos e exigências repetitivos.

Kanner comenta da semelhança com algumas características da esquizofrenia, porém acrescenta que, ao contrário desta, que sempre se inicia após um período de desenvolvimento normal, o desenvolvimento é anormal desde o início, sendo algumas características perceptíveis, eventualmente, já com poucos meses de idade - por exemplo, a ausência de reação normal, quando a mãe vai pegar a criança em seus braços. 

Kanner tece alguns comentários sobre o nível superior de inteligência prevalente nas famílias e uma falta de "calor" humano. Mas, ao contrário de autores mais tardios (desmentidos, posteriormente), atribui a um distúrbio inato a origem última do quadro de autismo.

Assim, Kanner estabeleceu as bases teóricas e diagnósticas do que hoje se denomina transtorno do espectro autista.

Referências bibliográficas

Associação Psiquiátrica Americana. (2022). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (5ª ed., texto revisado), 2022  Apud Instituto Inclusão Brasil https://institutoinclusaobrasil.com.br/dsm-5-tr-e-cid-11-diagnostico-de-transtorno-do-espectro-autista/ 

Autism Aspergers Advocacy Australia     Autism Spectrum Disorder (ASD) in the DSM-5-TR  https://a4.org.au/dsm5-asd, acessado em 23/02/2025

Bleuler E  (1911) Dementia praecox oder Gruppe der Schizophrenien; Leipzig, Wien: Franz Deuticke (Handbuch der Psychiatrie, hg. von G. Aschaffenburg, B: Spezieller Teil, 4. Abteilung, 1. Hälfte). 

Kanner L   Autistic Disturbances of Affective Contact.   Nervous Child: Journal of Psychopathology, Psychotherapy, Mental Hygiene, and Guidance of the Child 2 (1943): 217–50. 

Pozzi CM, Riesgo R d S, Assumpção Jr F A   Revisiting the history of autism before Kanner and Asperger: a tribute to Grunya Sukhareva  Arq Neuropsiquiatr.  2024 Aug;82(8):1-3. doi: 10.1055/s-0044-1788269. Epub 2024 Aug 8.

Sucharewa G E (1926) Die schizoiden Psychopathien im Kindesalter 

http://www.th-hoffmann.eu/archiv/sucharewa/sucharewa.1926.pdf , consultado em 25/08/2025


Imagem: Autistic Mind  https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Autistic_Mind_5.png#file


terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

DOUTOR, EU SOU AUTISTA?



De modo muito resumido, o diagnóstico de transtorno do espectro autista (TEA) se baseia em dois critérios, segundo a Associação Psiquiátrica Americana: 

1) Déficits persistentes na comunicação social (deficiências na reciprocidade social-emocional, deficiências em comportamentos comunicativos não verbais usados na interação social e déficits no desenvolvimento, manutenção e compreensão dos relacionamentos) 

2) padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades (movimentos, uso de objetos ou fala estereotipada ou repetitiva, insistência em mesmice, adesão inflexível a rotinas ou padrões ritualizados de comportamento verbal e não verbal; interesses altamente restritos ou fixados, de intensidade ou foco anormal; hiperreatividade ou hiporreatividade a estímulos sensoriais ou interesse incomum por aspectos sensoriais do ambiente). 

Se lermos com atenção, veremos que vários comportamentos diferentes podem ser encaixados nestas definições. Por este motivo, recebemos no consultório pessoas que nos procuram para saber se são autistas porque, por exemplo, têm dificuldades em iniciar ou manter relacionamentos ou têm algum hábito rígido ou interesse incomum. Entretanto, tais características podem ter muitas origens: por exemplo, dificuldades em iniciar relacionamentos frequentemente são devidos a um transtorno de ansiedade chamado de "fobia social", que se assemelha a uma timidez excessiva, um medo de "fazer feio", de ser avaliado ou julgado e achado ridículo e que impede ou muito dificulta a pessoa se aproximar de alguém;  hábitos rígidos podem fazer parte de uma personalidade obsessiva (pessoas que não toleram ou toleram com muita dificuldade mudanças em hábitos ou mudanças no contexto em que vivem ); interesses incomuns, por outro lado, podem inclusive ser normais, fazer parte dos hábitos de pessoas que são popularmente chamadas de "excêntricas", mas sem que esta excentricidade lhes traga algum prejuízo.

Uma vez, recebi uma pessoa que achava que poderia ser autista e se descrevia como "sem senso de humor" e desinteressada por relacionamentos. Conversando, com calma e pedindo exemplos, ficou claro que ela não ria de piadas que fossem pouco inteligentes (o que revelava um senso de humor mais refinado e não uma falta dele) e como era muito mais culta e inteligente que a maioria das pessoas que encontrava, sentia um certo desprezo por elas e, por isto, não fazia questão de cumprimentá-las ou saber como estavam - esta característica pode até não ser muito simpática, mas certamente não é o tipo de desinteresse que algumas pessoas com TEA apresentam.

Por este motivo, as pessoas devem evitar o autodiagnóstico e, em caso de dúvidas, devem procurar um profissional habilitado - geralmente psiquiatras - para fazer o diagnóstico. Outro aspecto importante é que, ao contrário do que muitas pessoas (e alguns profissionais) pensam, na imensa maioria dos casos, não há necessidade de testes psicológicos ou "neuropsicológicos" para se fazer o diagnóstico, sendo suficiente uma entrevista psiquiátrica cuidadosa, utilizando as informações fornecidas pelo(a) paciente e (principalmente em crianças), pelos familiares ou, mais raramente, de seus professores. No caso de crianças muito pequenas ou de crianças que tenham dificuldades de se expressar em palavras, vídeos registrando comportamentos que a família ache incomuns também podem complementar a consulta psiquiátrica.


Referência bibliográfica

American Psychiatric Association. (2022). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed., text rev.). https://doi.org/10.1176/appi.books.9780890425787

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Menina com TEA


sábado, 8 de fevereiro de 2025

PSICOTERAPIA OU REMÉDIOS, O QUE É MELHOR?





A Associação Psicológica Americana define psicoterapia como “qualquer serviço psicológico prestado por um profissional treinado que utiliza principalmente formas de comunicação e interação para avaliar, diagnosticar e tratar reações emocionais, formas de pensar e padrões de comportamento disfuncionais”.1

O que seriam estas “reações emocionais, formas de pensar e padrões de comportamento disfuncionais”? São reações que trazem sofrimento ou levam a outros prejuízos na vida da pessoa. Por exemplo, o luto relacionado à perda de um ente querido traz sofrimento. Por outro lado, se uma pessoa abusa de bebidas alcoólicas, pode até não apresentar sofrimento (pelo menos, num primeiro momento, contanto que não seja impedida de beber), porém as consequências do uso podem levar a problemas de saúde, profissionais e familiares. Portanto, este comportamento é disfuncional, apesar de não levar, necessariamente, a um sofrimento imediato. Um a pessoa que esteja num episódio maníaco, sentindo-se superpoderosa e ultrarrica, com a sexualidade exacerbada e gastando dinheiro de modo incompatível com suas reais condições financeiras, também pode não estar sofrendo, porém seus comportamentos, juntamente com sua incapacidade de perceber o quanto está alterada, traz consequências que lhe trarão, futuramente, sofrimento.

No primeiro exemplo acima, da pessoa em luto, o atendimento psicoterápico pode ajudar a pessoa num processo de aceitação progressiva e reconstrução da sua vida e relacionamentos, saindo de um sofrimento muitas vezes paralisante. No caso da pessoa que tem um transtorno de uso de álcool, também, uma psicoterapia com professional com conhecimento especializado nessa área pode ajudá-la a compreender melhor os fatores e contextos correlacionados ao seu uso disfuncional e, assim, aos poucos, aprender a controlar-se2 de modo mais eficaz. Finalmente, no terceiro exemplo, a psicoterapia não costuma ser muito útil, enquanto o(a) paciente estiver em crise, pois as alterações do funcionamento cerebral são tão profundas, num caso desses, que impedem que as técnicas psicoterápicas levem a alterações suficientemente abrangentes e duradouras.

No que se refere ao tratamento medicamentoso, numa situação de luto por perda de um ente querido, geralmente não há indicação de uso de medicação, pois se trata de uma reação normal, apesar de, em algumas pessoas, poder ser mais prolongada e profunda que em outras. No segundo exemplo, do transtorno de uso de álcool, além da psicoterapia, existem pelo menos três medicações que podem diminuir os riscos de recaída (acamprosato, dissulfiram e naltrexona) e, portanto, a associação de medicamentos com a psicoterapia é recomendada. No último exemplo, o caso do episódio maníaco, ele deve obrigatoriamente ser tratado com medicação, pois os medicamentos podem ajudar a diminuir a intensidade dos sintomas já a partir do início do uso e, com o uso continuado, podem diminuir a duração da crise e, finalmente, prevenir recaídas.

POR QUE ESTAS DIFERENÇAS?

O cérebro pode apresentar problemas de funcionamento detectáveis por métodos laboratoriais e de imagens e, nestes casos, o tratamento geralmente fica a cargo dos neurologistas. Porém, há alterações de seu funcionamento mais sutis, que não podem ser vistos através de metodologia laboratorial convencional, mas que levam a alterações de pensamentos, emoções e da interação com o ambiente. Este tipo de alterações, geralmente, fica a cargo dos psiquiatras. Dentro do grupo destes transtornos, alguns têm características mais biológicas (como o transtorno bipolar) e outros têm características mais de aprendizados disfuncionais ou seja, a história de vida e de interações da pessoa fez com que ela tivesse comportamentos (e emoções e pensamentos) que a fazem sofrer – em outras palavras, a pessoa não está conseguindo lidar com certas situações difíceis e isto lhe traz um intenso sofrimento (como no exemplo do luto, acima). Finalmente, alguns transtornos têm claros components biológicos (por exemplo, em algumas famílias pode haver uma predisposição genética para o abuso de álcool), mas têm também aspectos comportamentais muito relevantes (por exemplo, mesmo em famílias nas quais haja uma propensão genética para o abuso de álcool, nem todas as pessoas terão o transtorno). É neste casos que se indica tanto um tratamento medicamentoso, visando à compensação da predisposição biológica quanto psicoterápica para ajudar a pessoa a compreender seu próprio funcionamento e, com isto, aprender novos comportamentos que lhe possibilitem enfrentar seu transtorno.

Desta forma, respondendo a pergunta inicial, não se pode dizer que a psicoterapia seja melhor que os remédios ou estes sejam melhores que a psicoterapia: a decisão vai depender do diagnóstico de cada pessoa e, na maioria dos casos, ambos devem ser usados para se ter os melhores resultados.

 

Referências bibliográficas

American Psychological Association (2023). Psychotherapy. In APA dictionary of psychology  https://dictionary.apa.org/psychotherapy , acessado em 28/06/2024


Imagem: Mental health  https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Mental-health 2313428_640.png (acessado em 08/01/2025)

 

Notas

1. Traduzido pelo autor.

2. No caso, trata-se de controlar seu comportamento, o que não significa tentar beber de forma controlada, pois em muitos casos o objetivo do tratamento é que a pessoa consiga se abaster, dado que nos casos mais graves a probabilidade de conseguir beber controladamente é minima e, paradoxalmente, mais difícil de atingir que a abstinência.