Segundo revisões da história do conceito de autismo, a primeira pesquisadora a descrever crianças com características de autismo foi a psiquiatra soviética Grunya E. Sucharewa, em 1926; porém, ela chamou os quadros destas crianças de "psicopatia esquizoide". O termo "autismo" já tinha sido mencionado, em 1911, pelo psiquiatra suíço E. Bleuler, mas noutro contexto - para descrever o mundo isolado e ensimesmado em que viviam os portadores de esquizofrenia. Porém, a história do conceito como o conhecemos hoje se inicia com L. Kanner, que publicou, em 1943, os casos de 11 crianças. A seguir, um breve resumo, porém é aconselhável ler o artigo original, onde aparecem muito mais detalhes.
Caso 1: examinado inicialmente aos 5 anos de idade, tinha história de seletividade alimentar, restrição de perguntas a alguns assuntos específicos (e formulação das perguntas numa única palavra), facilidade em decorar o alfabeto, nomes e faces e mesmo textos inteiros. Indiferença em relação aos pais e parentes. Desinteresse por coisas que normalmente despertam entusiasmo nas crianças como, por exemplo, alguém vestido de Papai Noel. Não demonstrava afeto quando acarinhado, não prestava atenção se alguém entrava ou saía, não demonstrava alegria em ver os pais ou um amiguinho e nem tomava a iniciativa para brincar com alguém. Parecia mais feliz quando estava sozinho e raramente ia até alguém que o chamasse. Aos dois anos, muito interessado em brinquedos com blocos de girar, frigideiras e outros objetos redondos. Adquiriu o hábito de balançar a cabeça de um lado para o outro e parecia estar sempre pensativo. Repetição das mesmas palavras, frases, disposição de objetos. Entendimento apenas literal dos mandos. Dificuldades no uso correto no uso de pronomes pessoais.
Caso 2: Inicialmente examinado aos 6 anos, tinha histórico de ser autossuficiente, não participar de jogos interativos, muito medo de objetos mecânicos; no começo da vida não se interessava por ninguém, depois passou a aceitar um pouco melhor a presença de pessoas, mas no geral as percebia como interferência em suas atividades. Aprendeu muitas canções já aos dois e meio anos de idade. Dificuldade em pedir as coisas e dificuldade em não recebê-las quando as quer. Dificuldades no uso correto de pronomes pessoais. Quando mãe ía pegá-lo em seus braços, nunca assumia postura de expectativa. Ou evitava outras crianças ou se metia no meio delas de forma agressiva.
Caso 3. Inicialmente, foi considerado surdo, por não falar ou responder perguntas. Levado para internação, concluíram que provavelmente ouvia, porque obedecia a ordens simples", como "sente-se" ou "deite-se". Parecia inteligente, demonstrando curiosidade relacionada aos instrumentos usados para examiná-lo. Mas, não prestava atenção a conversas ao seu redor e fazia ruídos, mas não falava palavras inteligíveis. Pela descrição da mãe, chegou a imitar os sons da fala mas, depois, parou. No consultório do psiquiatra, brincava com os brinquedos, mas não prestava atenção às pessoas, no recinto. Emitia ruídos ininteligíveis. Num retorno, aos 4 anos e 11 meses de idade, ficou persistentemente ligando e desligando as luzes. Não dizia à mãe, se queria algo, mas se mostrava furioso, até que ela adivinhasse o que desejava.
Caso 4. Foi levado à clínica aos 5 anos de idade, para avaliação psicométrica, pois se achava que tinha deficiência intelectual - havia estado num jardim de infância particular, onde sua fala incoerente, incapacidade de adaptar-se e acessos de raiva levaram a esta suspeita. Aos 3 anos, havia decorado 37 canções. No primeiro ano de vida apresentava muitos vômitos, o que levou a várias trocas nas fórmulas com que o alimentavam. Estava sempre ocupado com algo, com vivacidade, mas quando se falava com ele, continuava em sua atividade. Kanner observa que não parecia desobediente, porém extremamente distante. Parecia muito satisfeito com suas atividades, a não ser que alguém interferisse persistentemente com o que estava fazendo. Neste caso, primeiro tentava se desviar da pessoa e, se não conseguissem tinha acessos de raiva. Manuseava adequadamente vários objetos e passou também a falar frases soltas, com um bom vocabulário, mas que não aparentavam que pretendesse comunicar-se. Repetia frases ditas por outras pessoas e decorava trechos com muita facilidade. Falava de si sempre na segunda pessoa. Comportava-se como se as pessoas não existissem e nunca olhava para suas faces. Frequentemente andava em círculos, masturbava-se com frequência e apresentava vários comportamentos repetitivos.
Caso 5. Foi levada à clínica aos 8 anos e 4 meses. Apresentava vocabulário normal aos 2 anos de idade, mas sempre com dificuldades para com as palavras estruturar sentenças; soletrava, escrevia e lia bem, porém mantinha a dificuldade de expressão oral. Hábitos rígidos e repetidos, repetia frases, usava repetidamente determinados objetos. Falava de si na segunda pessoa e se referia à mãe com "eu", Desatenta ao ponto de parecer que não ouvia. No exame psiquiátrico não mostrava nenhuma vontade de interagir nem contato afetivo. Picada com uma agulha, disse "machuca", mas a palavra não era dirigida a ninguém. Brincava com a própria mão como se fosse um brinquedo. Sua manipulação de objetos era repetitiva. Seus desenhos, estereotipados e sem imaginação. Interrompia conversas dos outros com palavras ou frases estereotipadas.
Caso 6. Foi levada à clínica aos 11 anos de idade. Morava numa instituição para deficientes intelectuais desde os 5 anos de idade, mas se percebeu que não tinha deficiência intelectual. Não prestava atenção no que lhe falavam, mas parecia entender tudo o que esperavam dela. Não interagia com as pessoas, mas se cuidava, montava quebra-cabeças, nos quais persistia obsessivamente até completar a figura (o que conseguia, mesma que as peças de dois quebra-cabeças diferentes fossem misturadas). Testada, apresentou um Q.I. de 94. Respondia as perguntas sem olhar para a pessoa, olhando para o vazio. Quando as crianças se juntaram em torno do piano, ela pareceu não perceber; não prestava atenção à música, mergulhada em seu mundo à parte. Quando as crianças se retiraram, pareceu não perceber e nem mudou de posição.
Caso 7. Foi encaminhado à clínica aos 3 anos e 2 meses. Sua mãe o descrevia como sempre lento e quieto. Achou-se, por um tempo, que fosse surdo, porque não apresentava nenhuma mudança de expressão quando se falava com ele e nem tentava falar. Aceitava líquidos somente num recipiente todo de vidro e, na clínica, chegou a ficar 3 dias sem aceitar líquidos, porque foram oferecidos num recipiente metálico. Tinha muitos medos, incluindo água corrente e queimadores de gás. Incomodava-se com quaisquer mudanças, ficando temperamental e chegando a chorar. Gostava de puxar persianas para cima e para baixo, abrir e fechar portas, rasgar caixas de papelão em pequenos pedaços e ficar horas se divertindo com eles. Entrou no consultório sem olhar para as pessoas e logo se dirigiu a um tabuleiro de Seguin, colocando as formas em seus lugares, corretamente. Quando se retirou o tabuleiro, ficou perturbado, imediatamente percebendo sua ausência mas, quando o colocaram de volta, não se importou mais com ele. Quando se aquietou, ficou pulando, com uma expressão extática. Não respondia, quando chamado ou quando se dirigia uma palavra a ele. Nunca sorria. Por vezes emitia sons desarticulados, cantarolando. Frequentemente levava objetos aos lábios.
Caso 8. Levado à clínica aos 3 1/2 anos, a mãe descrevia que, gradualmente, desenvolveu interesses rígidos e só se dedicava a eles. falava deles. Se não pudesse ter acesso a eles, mostrava-se inquieto. Também demonstrava um interesse muito maior por objetos. Demorou para falar, nunca fazia perguntas com a entonação característica, repetia muito frases - dificilmente falava uma sentença uma única vez, chegando a fazer 50 repetições. Só raramente fala de suas experiências. Gosta de brincar sozinho, montando coisas como, por exemplo, montando um carrinho com caixas. Não gostava que alguém se aproximasse. Punha várias coisas na boca e chegaram a ser encontrados pedregulhos em suas fezes e, uma vez, aspirou algodão, requerendo traqueotomia. Entrando no consultório, logo viu um trem de brinquedo, pegou-o e ficou conectando e desconectando repetidamente os vagões, dizendo "mais trem, mais trem, mais trem". Também repetidamente contava as janelas dos vagões, em voz alta. Levado a uma sala sem trens para fazer o teste de Binet, foi difícil convencê-lo a fazer e, quando o completou, pareceu ao psiquiatra que o fez de maneira a se livrar o mais rápido possível. Seu QI foi de 142. Numa descrição enviada pela mãe quando tinha cinco anos, foi descrito como "lobo solitário", permanecendo sozinho para brincar e só se dirigindo a um adulto quando queria ouvir uma história. Lia histórias simples para si mesmo. Tinha muitos medos de ferimentos e se assustava muito se alguém, por acidente, lhe cobrisse o rosto. Foi levado novamente ao psiquiatra aos 11 anos e, durante a entrevista, manteve-se muito sério, porém com bastante pressão do discurso, perguntando obsessivamente sobre janelas, sombras, quartos escuros. Por vezes, respondia às perguntas em forma de barganha: "Você responde uma pergunta minha e eu respondo uma pergunta sua." As definições que dava das coisas eram sempre descrições muito específicas como, por exemplo, üm balão é feito de borracha e contém ar e às vezes contém gás e às vezes pode subir no ar e às vezes podem ser segurados; quando se faz um furo neles, estouram e se as pessoas os apertam, estouram. Está certo?"
Caso 9. Levado à clínica com 4 e meio anos, tinha um histórico de, com um ano e meio de idade, conseguir distinguir 17 sinfonias. Passou a interessar-se também pela manipulação repetitiva de objetos, como, por exemplo, rodopiar cilindros ou refletir a luz em vários espelhos. Parecia sempre distanciado das pessoas à sua volta, falava de si na segunda pessoa. Quando alguém jogou no chão um almanaque que estava lendo e pisou em cima, ele tentou remover o pé da pessoa como se fosse um objeto e não parte de uma pessoa. Nas conversas, somente reproduzia o que havia escutado, jamais emitia algo que fosse originalmente seu. Quando num grupo de pessoas, não olha para elas. Na escola se mantém sempre afastado das outras crianças. Se houvesse uma atividade musical, postava-se na frente de todos e começava a cantar. Nunca inicia uma conversação. Quando entrou no consultório do psiquiatra, não olhou para ninguém que estava lá. Tudo o que fazia era muito repetitivo.
Caso 10. Avaliado aos 2 anos e 4 meses de idade. Rolava de um lado para o outro, antes de adormecer. Se não sabem o que quer, fica berrando. Entrando no consultório, ficou andando de um lado para o outro, sem rumo. Não estabelecia nenhum contato entre dois objetos, a não ser quando era para rabiscar. Não respondia à maioria dos comandos simples. Ao final do quarto ano de vida, seu vocabulário melhorou muito. Seu contato afetivo era pouco e somente com poucas pessoas. Usava o pronome da segunda pessoa para referir-se a si mesmo. Sempre empurrava para o lado o primeiro pedaço de seus alimentos. Sua rotina tinha de ser rígida, qualquer mudança o deixava em pânico. Possuía um vocabulário excelente, mas só repetia as sentenças ditas por outros, não produzindo nada original. Tinha excelente memória e conhecia de cor rezas em várias línguas e poemas. Aos quatro anos e meio, passou a usar os pronomes mais adequadamente. Precisava de um ambiente muito estável e, nas avaliações, conseguia isto mantendo porta e janela fechadas. Se sua mãe abria, primeiramente ele logo as fechava e, se abrisse de novo, irrompia em lágrimas. Ficava muito incomodado se visse algo incompleto. Uma boneca de duas estava sem chapéu e ele o ficou procurando pela sala inteira. Quando trouxeram e colocaram nela o chapéu, imediatamente perdeu o interesse por ela. Aos cinco anos e meio, passou a ter um bom domínio dos pronomes.
Caso 11. Levada à clínica aos 7 anos e 4 meses de idade, tinha história de não conseguir lidar com abstrações: não entendi as brincadeiras das outras crianças, não queria ouvir histórias, ficava andando e falando sozinha. Gostava muito de animais e, por vezes, os imitava. Com 1 ano de idade, falava 4 palavras, mas não houve progresso posterior da fala e chegaram a achar que fosse surda. Por causa de suas dificuldades, também se pensou numa deficiência intelectual porém, os médicos que a viam, achavam que sua expressão facial era de uma pessoa inteligente. Aprendeu a falar aos 5 anos, mas suas frases não se relacionavam à situação do momento ou se relacionavam a ela de uma forma metafórica. Seu comportamento também era diferente do das outras crianças: quando elas estavam sendo ensinadas a cuidar de flores, bebeu a água e comeu as plantas. Tinha um vocabulário muito rico, aprendendo especialmente bem as classificações dos animais. Não usava os pronomes corretamente, mas era correta nos tempos e nos plurais. Dificuldades para entender o significado de números. Muito medo de barulho, tinha tanto medo do aspirador de pós que se afastava até do quarto onde ste ficava guardado. Se fosse ligado, tampava as orelhas com as mãos e corria para a garagem. Examinada por uma psicóloga aos 7 anos, mantinha uma relação distante e, mesmo quando restringida fisicamente, afastava o objeto ou a parte do corpo que a restringia, mas em nenhum momento pedia para que a soltassem ou pedia alguma ajuda. Seu discurso continuava se restringindo a repetir frases, raramente emitindo algo original. Decorava o nome das crianças com quem convivia, mas não se relacionava com elas. Levada para o playground, demonstrou medo e correu para seu quarto. Conseguia ficar longos períodos brincando sozinha com blocos de montar, desenhar ou ficar olhando gravuras.
ALGUNS DOS COMENTÁRIOS RELEVANTES DE KANNER SOBRE SEUS CASOS
A característica mais evidente, fundamental e característica do transtorno seria uma incapacidade das crianças, desde o início de suas vidas, de se relacionarem do modo habitual com pessoas e situações.
Esta dificuldade de interação com pessoas se caracteriza por dificuldades graves na comunicação, incluindo severas limitações da linguagem (que podem, lentamente, melhorar, com a passagem do tempo) e a necessidade de uma regularidade ininterrupta no ambiente, de modo que uma série de estímulos externos (sons ou interferência nas atividades) são vivenciados com extremo desconforto e, como consequência, segundo Kanner, na criança predominariam comportamentos e exigências repetitivos.
Kanner comenta da semelhança com algumas características da esquizofrenia, porém acrescenta que, ao contrário desta, que sempre se inicia após um período de desenvolvimento normal, o desenvolvimento é anormal desde o início, sendo algumas características perceptíveis, eventualmente, já com poucos meses de idade - por exemplo, a ausência de reação normal, quando a mãe vai pegar a criança em seus braços.
Kanner tece alguns comentários sobre o nível superior de inteligência prevalente nas famílias e uma falta de "calor" humano. Mas, ao contrário de autores mais tardios (desmentidos, posteriormente), atribui a um distúrbio inato a origem última do quadro de autismo.
Assim, Kanner estabeleceu as bases teóricas e diagnósticas do que hoje se denomina transtorno do espectro autista.
Referências bibliográficas
Associação Psiquiátrica Americana. (2022). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (5ª ed., texto revisado), 2022 Apud Instituto Inclusão Brasil https://institutoinclusaobrasil.com.br/dsm-5-tr-e-cid-11-diagnostico-de-transtorno-do-espectro-autista/
Autism Aspergers Advocacy Australia Autism Spectrum Disorder (ASD) in the DSM-5-TR https://a4.org.au/dsm5-asd, acessado em 23/02/2025
Bleuler E (1911) Dementia praecox oder Gruppe der Schizophrenien; Leipzig, Wien: Franz Deuticke (Handbuch der Psychiatrie, hg. von G. Aschaffenburg, B: Spezieller Teil, 4. Abteilung, 1. Hälfte).
Kanner L Autistic Disturbances of Affective Contact. Nervous Child: Journal of Psychopathology, Psychotherapy, Mental Hygiene, and Guidance of the Child 2 (1943): 217–50.
Pozzi CM, Riesgo R d S, Assumpção Jr F A Revisiting the history of autism before Kanner and Asperger: a tribute to Grunya Sukhareva Arq Neuropsiquiatr. 2024 Aug;82(8):1-3. doi: 10.1055/s-0044-1788269. Epub 2024 Aug 8.
Sucharewa G E (1926) Die schizoiden Psychopathien im Kindesalter
http://www.th-hoffmann.eu/archiv/sucharewa/sucharewa.1926.pdf , consultado em 25/08/2025
Imagem: Autistic Mind https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Autistic_Mind_5.png#file

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