Em 1943, o psiquiatra austríaco Hans Asperger publicou um estudo de quatro casos de crianças cuja característica principal era um profundo prejuízo do contato com o meio-ambiente, sobretudo com as pessoas (principalmente indiferença, por vezes chegando ao ponto de as tratar como seres inanimados). A relação com objetos também estava prejudicada, indo de uma intensa repulsa ao contato com alguns - por exemplo, certos tecidos de roupas - até o fascínio exagerado por outros, levando-os a ficarem por longo tempo os manipulando ou, em outros casos, os acumulando (não por sua utilidade, mas por suas características externas como, por exemplo, coleções de caixas de fósforos). Diferentemente de Kanner (veja publicação anterior), Asperger não considerava essencial a presença de dificuldades precoces com a linguagem (apesar de poderem estar presentes com alguma frequência). O conceito que se depreende do artigo de Asperger é de um quadro muito menos homogêneo do que o descrito por Kanner - e muito próximo da definição atual do transtorno do espectro autista (TEA).
Asperger inicia o artigo fazendo longas considerações sobre a questão da individualidade de cada caso (ou seja, não é possível encaixar todas as características num dado diagnóstico), mas termina concluindo que, apesar da existência desta complexidade, há necessidade de se encontrar aspectos repetidos entre os indivíduos, que levem a uma classificação para melhor poder estudar os casos. Cita diversos autores que estabeleceram classificações de personalidade (Asperger considera o autismo um transtorno de personalidade - ou "psicopatia", como se chamava antigamente) e conclui que nenhum deles cobre as características que encontrou em seus pacientes (o que não era totalmente verdade, como escrevi na primeira parte desta postagem).
Asperger descreve apenas quatro casos, mas dá muitos detalhes sobre cada um deles e, ao final do artigo, diz ter encontrado mais de duzentas crianças com as características da "psicopatia autista", ao longo de dez anos. Comenta, na discussão, que as características individuais são muito variáveis, incluindo o grau de comprometimento do contato e o nível intelectual - abrindo o diagnóstico, assim, para o leque do que hoje em dia se chama "transtorno do espectro autista" (TEA) ou mesmo para a questão da "neuroatipicidade", hoje em dia tão comentada. Em relação à constância de características, cita que as crianças se mostram diferentes desde os dois anos de idade, pelo menos - o que também está incluído nos critérios diagnósticos atuais. As dificuldades no "aprendizado das simples tarefas da vida prática" e com a "adaptação social", na criança pequena, teriam a mesma origem, segundo Asperger, das dificuldades posteriores com aprendizado e comportamento, na criança em idade escolar, das dificuldades com trabalho e do desempenho atípico, no jovem - e que se relacionam às dificuldades conjugais e conflitos sociais do adulto. Asperger comenta que, para quem aprendeu a reconhecer pessoas desse molde, reconhece-as de imediato, quando entram no ambulatório, através de seus comportamentos iniciais ou da primeira palavra que dizem. Seu olhar também seria característico que, ao invés de se dirigir ao ambiente e às pessoas, se dirigiria para longe ou para o interior da pessoa. Elas também não fariam contato com o olhar, ao falarem com outra pessoa. Porém, o olhar destas crianças se ergueria e se expressaria de modo resoluto, quanto têm em mente fazer alguma "maldade" . (Interessantemente, já na descrição dos casos, Asperger descreve as crianças autistas como inerentemente más.)
O artigo comenta também o alto desempenho dos autistas inteligentes e sua originalidade (por exemplo, crianças de 6 a 7 anos dando definições excêntricas das diferenças entre objetos, quando questionadas, em testes de inteligência. Assim, a diferença entre uma escada e uma escada e uma escadaria seria que a primeira sobe de forma pontuda, enquanto a segunda sobe em anéis, serpenteando. Por trás destas manifestações estaria a capacidade das crianças autistas de verem as coisas e processos do ambiente através de novos pontos de vista (itálico meu). E estes pontos de vista seriam, por vezes, espantosamente maduros, muito além do que se espera em crianças da mesma idade. No segundo caso do artigo (Harro L.), por exemplo, além da originalidade de definições de palavras e diferenças entre coisas, o menino possui uma habilidade de aritmética que, além de estar acima do esperado pela idade (8 anos e meio), se manifesta através de modos de calcular originais e incomuns. Por exemplo: 52 - 25 = 27, porque "2 vezes 25 é 50, mais 2 é 52; e 25 mais 2 é 27".
Em relação à interação social, Asperger comenta que as dificuldades provém do "estreitamento" (Einengung) da relação do autista com o ambiente, estando ausente o sentimento de vinculação com a família e, assim, os principais conflitos ocorreriam dentro da família. Novamente, Asperger se refere aos atos maldosos dessas crianças, que conseguiriam descobrir o que de mais desagradável e doloroso conseguem causar mas (ao mesmo tempo), chegando por vezes a pensamentos ou atos "sádicos" (sic), mas lhes faltaria a sensibilidade para perceber o quanto isto afeta os outros. Na presença da família, andam pelo ambiente sem interagir ou interagem com objetos de forma estereotipada, agrupando blocos de brinquedo de montar de acordo com a cor, formato ou tamanho, ao invés de construir algo com eles. De modo geral, seguem seus próprios impulsos, sem se importar com o ambiente. A família pode evitar conflitos simplesmente deixando a criança seguir seu próprio caminho, ocorrendo problemas apenas nas tarefas do dia-a-dia, como levantar, lavar-se, vestir-se, comer. Consequentemente a estas características, surgem dificuldades na escola, onde a criança precisa apresentar obediência. No entanto, Asperger comenta que a tendência das crianças autistas é melhorar com a idade e apenas uma minoria não consegue nenhuma adaptação social, sobretudo aquelas que têm deficiência intelectual. Isto, porque a dificuldade dos autistas está na interação social, porém podem ter um excelente desempenho profissional (sobretudo em áreas extremamente especializadas, como matemática, áreas técnicas, química e mesmo funcionários), o que poderia ser, segundo o autor, uma "hipertrofia" compensatória de suas deficiências. Assim, estes indivíduos poderiam ter uma inserção social suportável ou mesmo de excelência. Desta forma, também teriam seu lugar no tecido do organismo social.
Referência: Asperger, H. (1944) Die “Autistischen Psychopathen” im Kindesalter. [The “Autistic Psychopaths” in Childhood]. Archiv für Psychiatrie und Nervenkrankheiten, 117, 76-136. https://doi.org/10.1007/BF01837709
Imagem: A boy looking at a molecule model Poindexter Propellerhead, CC BY-SA 3.0 <http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/>, via Wikimedia Commons

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