terça-feira, 30 de setembro de 2025

CANNABIS (MACONHA) VICIA, SIM!


Hoje em dia, não há mais dúvidas de que a Cannabis pode "viciar". Além disto, o conceito de "vício" (ou "dependência") não é o único aspecto relevante, pois se considera que qualquer quantidade usada é prejudicial e basta a presença de dois comportamentos problemáticos para se diagnosticar um Transtorno de Uso de Cannabis (TUC). Os critérios da Associação Psiquiátrica Americana para o diagnóstico do Transtorno de Uso de Cannabis (maconha) são os seguintes:

Presença de comprometimento ou sofrimento clinicamente significativo em 12 meses, manifestado por pelo menos 2 dos seguintes sintomas:

  1. Cannabis consumida em quantidades maiores ou por um período mais longo do que o pretendido
  2. Desejo persistente de consumir ou esforços mal-sucedidos para reduzir ou controlar o consumo
  3.  Muito tempo é gasto na aquisição, no uso ou na recuperação dos efeitos do uso de Cannabi
  4. Fissura ou um forte desejo ou necessidade de usar Cannabis
  5. Uso recorrente de Cannabis, resultando em prejuízo em cumprir obrigações importantes no trabalho, escola ou em casa;
  6. Continuação do uso, apesar de problemas sociais ou interpessoais persistentes ou recorrentes causados ou exacerbados pelo uso
  7. Atividades sociais, ocupacionais ou recreativas importantes abandonadas para poder usar Cannabis
  8. Uso recorrente de Cannabis em situações fisicamente arriscadas
  9. Continuação do uso, apesar de ter problema físico ou psicológico sobre o qual sabe ter decorrido ou se exacerbado devido ao uso de Cannabis
  10. Tolerância, definida por
  • necessidade de quantidades significativamente maiores de Cannabis para levar a intoxicação ou ao efeito desejado 
  • efeito significativamente menor com o uso continuado da mesma quantidade
11. Abstinência, manifestada por:
  • sintomas de abstinência característicos da Cannabis
  • uso de Cannabis ou substância intimamente correlata para aliviar ou evitar os sintomas de abstinência
SE A PESSOA PREENCHER CRITÉRIOS PARA TUC, É SINAL DE QUE PRECISA PARAR - O QUE PODE SER FACILITADO ATRAVÉS DE TRATAMENTO ADEQUADO

Riscos de desenvolvimento de TUC, de acordo com a frequência do uso

Numa revisão de seis estudos de coorte sobre TUC, comparando usuários com não-usuários, Robinson et al. (2022) observaram riscos cerca de 2 vezes maiores de desenvolver TUC para usuários anuais, 4 vezes maiores para usuários mensais, 8 vezes maiores para usuários semanais e 17 vezes maiores para pessoas que utilizavam Cannabis diariamente.

IMPORTANTE:

Numa meta-análise envolvendo 14 publicações e 3681 participantes, em pessoas que haviam usado Cannabis medicinal nos últimos 6 a 12 meses, transtorno de uso de Cannabis foi observado em 25% das pessoas (29% usando critérios do Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Psiquiátrica Americana, 5a. edição e 24% usando os critérios da 4a. edição). Esta prevalência é semelhante à encontrada em usuários recreativos (Dawson et al., 2024).

Referências bibliográficas

American Psychiatric Association. (2022). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed., text rev.). https://doi.org/10.1176/appi.books.9780890425787

Dawson D et al.  The prevalence of cannabis use disorders in people who use medicinal cannabis: A systematic review and meta-analysis Drug Alcohol Depend. 2024 Apr 1:257:111263. doi: 10.1016/j.drugalcdep.2024.111263. Epub 2024 Mar 8.PMID: 38493566

Robinson T et al. Identifying risk-thresholds for the association between frequency of cannabis use and development of cannabis use disorder: A systematic review and meta-analysis  Drug Alcohol Depend. 2022 Sep 1:238:109582. doi: 10.1016/j.drugalcdep.2022.109582. Epub 2022 Jul 21. PMID: 35932748 DOI: 10.1016/j.drugalcdep.2022.109582

Imagem

By scanned by NobbiP - scanned by NobbiP, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=6902012

SINTOMAS DA ABSTINÊNCIA DE CANNABIS (MACONHA)



Este é um texto em desenvolvimento. Inicialmente, serão citados apenas os critérios diagnósticos da abstinência de Cannabis, segundo o DSM-5-TR (APA, 2022). Em postagens posteriores, serão acrescentadas informações sobre cada um dos sintomas de abstinência.

A. Cessação do uso intenso e prolongado de cannabis (por exemplo, habitualmente uso diário ou quase diário, por um período de pelo menos alguns meses)

B. Três (ou mais) dos seguintes sinais e sintomas se desenvolvendo, num prazo de aproximadamente uma semana, após o critério A: 

1. Irritabilidade, raiva ou agressão; 

2. Nervosismo ou ansiedade; 

3. Dificuldades de sono (por exemplo, insônia ou sonhos perturbadores); 

4. Diminuição do apetite ou perda de peso; 

5. Inquietação; 

6. Humor deprimido; 

7. Pelo menos um dos seguintes sintomas físicos, causando desconforto significativo: dores abdominais, tendência a estremecer ou tremores, sudorese, febre, calafrios ou dor de cabeça.

C. Os sinais ou sintomas do Critério B causam desconforto ou prejuízo clinicamente significativos no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes.

D. Os sinais ou sintomas não podem ser atribuídos a outra condição médica, incluindo intoxicação por outra substância ou abstinência de outra substância.


Referência bibliográfica

American Psychiatric Association. (2022). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed., text rev.). https://doi.org/10.1176/appi.books.9780890425787

Imagem: Irritability  Fry1989 eh?, Public domain, via Wikimedia Commons  https://commons.wikimedia.org/wiki/File:MHWS_-_Irritability.svg

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

CANNABIS (MACONHA) MEDICINAL FUNCIONA?



Certamente, um do assuntos mais comentados, atualmente, é a questão do uso medicinal da maconha (Cannabis). O que se tem de comprovado sobre sua utilidade?

Primeiramente, é necessário lembrar que eventuais usos sugeridos ou que possam ser sugeridos, no futuro, se referem habitualmente às substâncias contidas na maconha (mais de 120 diferentes foram identificadas) ou dela derivadas e não ao uso da maconha em sua forma natural. Portanto, dizer que "canabinoides" (o nome destas substâncias) são (eventualmente) úteis, não significa, de forma nenhuma, que se recomenda o consumo de maconha do modo como as pessoas consomem recreativamente. 

Transtornos de ansiedade e depressão: numa meta-analise de 8 estudos, envolvendo um total de 316 pacientes, observou-se melhora significativa de sintomas ansiosos com canabidiol (CBD), sugerindo sua utilidade em pacientes com transtorno de ansiedade generalizada, ansiedade social e transtorno de estresse pós-traumático. Porém, os autores fazem um alerta contra conclusões precoces, dado ao tamanho limitado da amostra clínica, recomendando que mais pesquisas sejam feitas (Han et al., 2024). Outra revisão sistemática (Cammà et al.,  2024), os autores encontraram alguns resultados positivos para o uso de canabinoides na depressão, ansiedade e transtorno de uso de nicotina ("tabagismo"). Porém, sugerem que os resultados devem servir de estímulo para mais pesquisas e não que já comprovem a eficácia - até porque analisaram vinte e dois estudos pré-clínicos e apenas um estudo clínico (em pacientes humanos). Numa revisão sistemática sobre transtornos ansiosos, foi observada melhora para transtorno de ansiedade generalizada (TAG), transtorno de ansiedade social (TAS) e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT); 30% destes estudos (n = 4) relataram um resultado negativo para condições como transtorno obsessivo-compulsivo, tricotilomania, ansiedade de teste e TAS (Roberts et al., 2025). Também nesta última revisão são comentados insuficiências ou falhas metodológicas nos estudos revistos, de modo que, também neste caso, recomenda-se mais pesquisas para confirmação dos efeitos (portanto, não sugerindo, ainda, indicação no tratamento).

Tratamento de quadros demenciais: as demências - ou transtorno neurocognitivo maior - são quadros caracterizados por declínio cognitivo progressivo (sobretudo memória, mas também em outros domínios), levando a progressiva perda da capacidade de o indivíduo dar conta de sua vida cotidiana (finanças, compromissos ou mesmo higiene). Pode ter várias causas, sendo as mais frequentes a doença de Alzheimer, a vascular e a mista (que combina ambas). Numa meta-análise de 2021, não se conseguiram demonstrar efeitos benéficos (ou prejudiciais) do delta-9-THC (natural) ou do dronabinol ou nabilona, em 126 pacientes predominantemente com Alzheimer, com uma minoria com quadros vasculares ou mistos (Kuharic et al., 2021).

Diminuição da necessidade de opioides, no tratamento da dor crônica: o uso prolongado de opioides, um dos tratamentos mais eficazes para dores, pode levar a tolerância (perda da eficácia, se as doses forem mantidas) e mesmo a dependência. Assim, são sempre feitas pesquisas sobre opções alternativas no tratamento da dor crônica, para diminuir a necessidade de opioides. Apesar de algumas evidências positivas, ainda não há evidências suficientes que comprovem a eficácia do uso da Cannabis medicinal ou de seus derivados, para diminuir a necessidade de opioides (Noori et al., 2021).

Finalmente, numa meta-análise de 152 estudos, envolvendo 12123 pacientes e todas as indicações médicas que consideraram relevantes, constatou-se que os efeitos terapêuticos significativos dos canabinoides medicinais apresentam uma grande variabilidade no grau de evidência, que depende do tipo de canabinoide. O CBD tem um efeito terapêutico significativo para epilepsia (grau alto de evidência) e parkinsonismo (grau moderado de evidências). Há evidências moderadas também para para o dronabinol, para dor crônica, aumento do apetite e síndrome de Tourette e evidências moderadas para nabiximol, na dor crônica, espasticidade, sono e transtornos de uso de substâncias. Todos os outros efeitos terapêuticos significativos têm baixo, muito baixo ou mesmo nenhum grau de evidência (Bilbao; Spanagel, 2022).



Referências bibliográficas


Bilbao A; Spanagel. Medical cannabinoids: a pharmacology-based systematic review and meta-analysis for all relevant medical indications BMC Med . 2022 Aug 19;20(1):259. doi: 10.1186/s12916-022-02459-1. PMID: 35982439 PMCID: PMC9389720 DOI: 10.1186/s12916-022-02459-1

Cammà G et al.   Therapeutic potential of minor cannabinoids in psychiatric disorders: A systematic review  Eur Neuropsychopharmacol. 2025 Feb:91:9-24. doi: 10.1016/j.euroneuro.2024.10.006. Epub 2024 Nov 13. PMID: 39541799 DOI: 10.1016/j.euroneuro.2024.10.006

Han K et al. Therapeutic potential of cannabidiol (CBD) in anxiety disorders: A systematic review and meta-analysis Psychiatry Res . 2024 Sep:339:116049. doi: 10.1016/j.psychres.2024.116049. Epub 2024 Jun 21  PMID: 38924898 DOI: 10.1016/j.psychres.2024.116049

Kuharic DB et al. Cannabinoids for the treatment of dementia PMID: 34532852 PMCID: PMC8446835 DOI: 10.1002/14651858.CD012820.pub2 Cochrane Database Syst Rev. 2021 Sep 17;9(9):CD012820. doi: 10.1002/14651858.CD012820.pub2.

Noori A   Opioid-sparing effects of medical cannabis or cannabinoids for chronic pain: a systematic review and meta-analysis of randomised and observational studies  BMJ Open. 2021 Jul 28;11(7):e047717. doi: 10.1136/bmjopen-2020-047717.  PMID: 34321302 PMCID: PMC8319983 DOI: 10.1136/bmjopen-2020-047717

Roberts L et al.  Medicinal cannabis in the management of anxiety disorders: A systematic review  Psychiatry Res. 2025 Aug:350:116552. doi: 10.1016/j.psychres.2025.116552. Epub 2025 May 17.  PMID: 40413923 DOI: 10.1016/j.psychres.2025.116552  


Imagem: Medical Cannabis  By Silar - Own work, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=51520858

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

O QUE É PSIQUIATRIA TRANSDIAGNÓSTICA?



O diagnóstico psiquiátrico convencional, atualmente, baseia-se principalmente em critérios, que aparecem nas últimas edições do Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Psiquiátrica Americana (DSM, em sua quinta versão revisada, atualmente) e no Código Internacional de Doenças (OMS, em sua décima-primeira edição, atualmente). Estas categorias diagnósticas teriam vários aspectos positivos, tais como uma linguagem comum entre os pesquisadores e uma classificação que permite dar diagnósticos aps pacientes, tirando de sobre eles julgamentos sociais do tipo "doença mental é fraqueza". No entanto, segundo alguns autores, esta categorização também pode ser a causa de uma estagnação dos resultados em psiquiatria, há alguns anos. Estes autores, partindo do principio de que as atuais categorias não correspondem a mecanismos causais específicos (uma única categoria pode abranger vários supostos mecanismos causais, enquanto que várias categorias apresentam pontos em comum, quando se investiga as causas e mecanismos de diversos transtornos), propõem uma nova forma de pesquisar em Psiquiatria, os RDoC (abreviação para Research Domain Criteria). A proposta tem como objetivo investigar a origem dos sintomas psiquiátricos, utilizando como ponto de partida o que já se sabe deles, em termos de psicofisiologia, genética e o contexto no qual os sintomas se desenvolveram, dado que os transtornos psiquiátricos provêm de uma combinação destes fatores. (internos e externos) 

Ao contrário do que ocorre com as categorias tradicionais, nas quais os sintomas estão "presentes" ou "ausentes",  sendo no máximo classificados como "leves", "moderados" ou "graves", na população eles são melhor descritos como se distribuindo ao longo de uma linha contínua. A categorização levaria, segundo os proponentes do RDoC, a uma perda da riqueza diagnóstica, além do que algumas pessoas não se encaixam em nenhuma das categorias. Também, existe uma enorme presença de comorbidades, que é a ocorrência de mais de um diagnóstico na mesma pessoa - esta presença tão frequente poderia advir de a categorização ser um processo artificial e não ser devido a uma real distinção entre diversos sintomas. (N.A.: por exemplo, por este raciocínio, a presença simultânea de um episódio depressivo maior e de um transtorno de ansiedade generalizada poderia não ser devida a duas causas - uma para a depressão e outra para a ansiedade - mas, sim um único mecanismo seria responsável por uma simultaneidade de sintomas ansiosos e depressivos). Por outro lado, como os diagnósticos são feitos através do preenchimento de um número mínimo de critérios, mas para cada diagnóstico existem vários critérios possíveis, pode ocorrer que diagnósticos iguais tenham mecanismos causais diferentes. por exemplo, no diagnóstico da depressão, uma grande heterogeneidade caracteriza os vários sistemas diagnósticos desenvolvidos no século passado, de modo que é possível que algumas listas de critérios sejam abrangentes demais e outras, demasiadamente restritivas. Outro problema apontado é a alta frequência com que, ao longo da vida, os indivíduos mudam de diagnóstico, o que pode ser consequência da confiança excessiva em diagnósticos transversais, capturando apenas um instantâneo do quadro e não as oscilações, aparecimento e desaparecimento de sintomas, ao longo da vida.

Ainda em relação às categorias diagnósticas usuais, um dos seus objetivos seria facilitar a prescrição de tratamentos. No entanto, quando se faz um diagnóstico, frequentemente sintomas que não entram nos critérios acabam não sendo tratados ou, quando o são, o tratamento é feito através de uma adaptação individualizada de intervenções.

A ALTERNATIVA TRANSDIAGNÓSTICA

O modelo da Taxonomia Hierárquica da Psicopatologia (HiTOP, Hierarchic Taxonomy of Psychopatology) surgiu como um esforço de pesquisa para abordar esses problemas. Ele constrói síndromes psicopatológicas e seus componentes/subtipos com base na covariação observada de sintomas, agrupando sintomas relacionados e, assim, reduzindo a heterogeneidade. Também combina síndromes concomitantes em espectros, mapeando assim as comorbidades. Além disto, caracteriza estes fenômenos dimensionalmente, o que leva em conta problemas de limites e da instabilidade diagnóstica (Kotov et al., 2017; Kotov et al., 2021).

Na imagem do início do texto, aparecem as sobreposições de sintomas do grupo agressivo-impulsivo-reativo,  entre Intermittent Explosive Disorder (= IED, Transtorno explosivo intermitente), Conduct Disorder (= CD, Transtorno de conduta), Disruptive Mood Dysregulation Disorder (= DMDD, Transtorno Disruptivo da Desregulação do Humor) e (Hypo)manic Episode (= HE, Episódio (hipo)maníaco). Conforme comentado, acima, a presença de sintomas semelhantes em diagnósticos distintos é um dos problemas da nosologia categórica convencional, que a abordagem transdiagnóstica procura superar, isolando sintomas com base em evidências das neurociências, da psicologia e da psicossociologia.

Em princípio, o objetivo da psiquiatria transdiagnóstica é descobrir as categorias naturais que constituem a base para os sintomas psiquiátricos que configuram as queixas dos pacientes e as observações dos psiquiatras e psicólogos. Entretanto, muito do que se tem feito se restringe à confirmação de descobertas pré-existentes e à investigação de sintomas (e suas combinações) das classificações categoriais tradicionais (Fusar-Poli et al., 2019).

Outro aspecto importante é que a psiquiatria transdiagnóstica é uma linha de pesquisas em desenvolvimento, de modo que não há diretrizes suficientemente comprovadas - e aprovadas - para a utilização rotineira de suas descobertas, no tratamento psiquiátrico.


Imagem: Superposição de critérios para comportamento agressivo-impulsivo-reativo (AIR) By Eyoungstrom - Own work, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=112285313

Referências bibliográficas

Dagleish J et al.   Transdiagnostic Approaches to Mental Health Problems    Journal of Consulting and Clinical Psychology 2020 Vol. 88, No. 3, 179–195 http://dx.doi.org/10.1037/ccp0000482 

Fusar-Poli P et al.   Transdiagnostic psychiatry: a systematic review   World Psychiatry. 2019 Jun;18(2):192-207. doi: 10.1002/wps.20631. PMID: 31059629 PMCID: PMC6502428 DOI: 10.1002/wps.20631

Kotov R et al. (2017). The Hierarchical Taxonomy of Psychopathology (HiTOP): A dimensional alternative to traditional nosologies. J  Abnormal Psychol, 126(4), 454–477  https://doi.org/10.1037/abn0000258

Kotov R et al.   The Hierarchical Taxonomy of Psychopathology (HiTOP): A Quantitative Nosology Based on Consensus of Evidence    Annual Review of Clinical Psychology, 2021 Vol. 17:83-108 (Volume publication date May 2021) https://doi.org/10.1146/annurev-clinpsy-081219-093304


quinta-feira, 18 de setembro de 2025

QUAL O TRATAMENTO DO AUTISMO (TEA)?


Quais as intervenções possíveis para tratar os sintomas do TEA?

1. Esta postagem está em desenvolvimento e, nos próximos dias, mais tratamentos serão acrescentados.

2. A leitura destes tópicos não substitui a leitura crítica dos artigos originais citados - sobretudo no caso de profissionais de saúde que usem este texto como fonte de informação.

3. As conclusões de cada tópico estão realçadas, no texto, para facilitar a consulta.

4. Comentários e sugestões são bem vindos, no Blog.


MEDICAMENTOS E SUPLEMENTOS ALIMENTARES

Numa meta-análise em rede envolvendo 125 pesquisas aleatorizadas e controladas (RCT = randomized controlled trial) em crianças e adolescentes e 18 RCT em adultos, concluiu-se que as seguintes medicações poderiam vir a ser úteis (comparados a placebo), no controle de pelo menos um sintoma nuclear: aripiprazol, atomoxetina, bumetanida e risperidona, em crianças e adolescentes e fluoxetina, fluvoxamina, oxitocina e risperidona, em adultos. Apesar de alguns indícios de melhoras com carnosina, haloperidol, ácido folínico, guanfacina, ácidos graxos ômega-3, probióticos, sulforafano, tideglusibe e valproato, estes últimos resultados foram imprecisos e sem robustez. PARA TODAS AS SUBSTÂNCIAS REVISADAS NESTA META-ANÁLISE, A CONFIANÇA (UM ÍNDICE DA CONFIABILIDADE DOS RESULTADOS PARA ESTE TIPO DE META-ANÁLISE) FOI MUITO BAIXA OU BAIXA, À EXCEÇÃO DA OCITOCINA, PARA A QUAL FOI MODERADA. Ou seja, NÃO há comprovação suficiente para o uso rotineiro destas medicações e suplementos (Siafis et al., 2022). Outras meta-análises, inclusive, não observaram efeitos significativos da ocitocina nos sintomas do TEA (Martins et al., 2022).

ABA ("APPLIED BEHAVIOR ANALYSIS") - ANÁLISE COMPORTAMENTAL APLICADA

A análise comportamental aplicada (ABA) é um dos tratamentos mais tradicionais para os sintomas do TEA. O funcionamento segue as bases da terapia comportamental, identificando os gatilhos dos comportamentos-alvo (estímulos discriminativos) e as consequências que mantêm a presença do comportamentos-alvo (reforçadores). Comportamentos-alvo são os tanto comportamentos que se quer extinguir ou, pelo menos, diminuir sua frequência (como, por exemplo, acessos de raiva ou recorrer a estereotipias, em situações de estresse) quanto aqueles que se quer manter, aumentar ou modelar (por exemplo, ensinar a pessoa atividades de higiene e a comer de forma variada e saudável (naqueles que, rigidamente, querem consumir somente um número limitado de alimentos). Há vários estudos demonstrando o funcionamento da ABA (e.g. Eckes et al., 2023), porém há pesquisas que sugerem que o tratamento depende de características prévias dos pacientes (i.e., comportamentos que apresentavam antes do tratamento) e, portanto as técnicas devem ser individualizadas (Cerasuolo et al., 2022).


TERAPIAS ALTERNATIVAS

EQUOTERAPIA 

Revisões sistemáticas das pesquisas sobre este tipo de tratamento ou não encontraram eficácia ou detectaram melhoras em alguns aspectos (por exemplo na cognição social, comunicação, irritabilidade e hiperatividade) mas não em outros (consciência social, maneirismos, motivação, letargia, estereotipias e fala inadequada). Os estudos, conduzidos com pequeno número de indivíduos, são muito heterogêneos quanto à forma de tratamento (e sem medidas adequadas para mensurar os resultados), além de não terem comparação com outros tratamentos, com placebo ou com evolução natural, NÃO PERMITEM CONCLUSÕES DEFINITIVAS (e.g. Ningkun et al., 2023; Sissons et al., 2022; Trzmiel et al., 2018 )

PROBIÓTICOS

Fala-se muito, principalmente nos meios não especializados, sobre as relações entre o trato gastrointestinal e vários transtornos psiquiátricos e isto inclui o uso de probióticos em seu tratamento. O fato é que, apesar de algumas evidências, OS RESULTADOS SÃO, AINDA, INSUFICIENTES PARA SE RECOMENDAR ESTE TIPO DE ABORDAGEM (Xiao et al., 2023; Siafis et al., 2022), inclusive para autistas.

DIETA SEM GLÚTEN E CASEÍNA

Crianças autistas têm uma incidência aumentada de problemas gastrintestinais (McElharon et al., 2014) e alguns pais consideram que seus filhos sejam alérgicos aos componentes glúten (proteína encontrada no trigo e outros cereais) e caseína (proteína encontrada no leite). Com base nisto, alguns propuseram uma dieta livre de glúten e caseína, como tentativa de melhorar as manifestações do autismo. Entretanto,  REVISÕES SISTEMÁTICAS SOBRE A QUESTÃO NÃO ENCONTRARAM EVIDÊNCIAS DE QUE ESTA DIETA SEJA ÚTIL - AO CONTRÁRIO, PODERIA LEVAR À FALTA DE NUTRIENTES ESSENCIAIS (Keller et al., 2021)

TRANSPLANTE DE MICROBIOTA FECAL

A ideia do transplante de microbiota fecal surgiu com base na observação de uma frequência acima da média de distúrbios gastrintestinais, em pessoas com TEA e alguns estudos detectaram diferenças na flora intestinal, que poderiam estar associados a estes distúrbios. Entretanto, esta observação não permite concluir que eles tenham um efeito causal ou sejam consequência do transtorno (por exemplo, dos hábitos alimentares rígidos) e OS ESTUDOS ENVOLVENDO O PROCEDIMENTO, COMO TENTATIVA DE MELHORAR OS SINTOMAS, NÃO PERMITEM CONCLUSÕES DEFINITIVAS, por serem muito heterogêneos, não terem um número suficiente de pacientes envolvidos e outras deficiências metodológicas (He et al., 2023).


ESTIMULAÇÃO MAGNÉTICA TRANSCRANIANA (EMT)

A estimulação magnética transcraniana consiste da aplicação de um campo magnético ao cérebro (como um todo ou em regiões específicas). Como aos campos magnéticos correspondem campos elétricos, acredita-se que o surgimento de correntes elétricas, no cérebro, levaria a alterações na neurotransmissão, que poderiam levar a melhora de transtornos psiquiátricos. A ideia se baseou na eficácia da eletroconvulsoterapia, onde se aplicam correntes elétricas no cérebro, através de sua passagem através do crânio. A EMT se mostrou eficaz em depressões, sobretudo se combinada a medicações antidepressivas. Numa meta-análise (Smith et al., 2023), observou-se efeitos positivos sobre sintomas de hiperatividade, irritabilidade, letargia/retraimento social, comportamentos compulsivos, comportamentos ritualísticos/resistência a mudanças ("sameness behavior") e comportamentos estereotipados. Entretanto, por questões metodológicas, os autores referem que ainda há necessidade de estudos melhores para que se possa recomendar a EMT como tratamento para TEA.


CANABINOIDES

A maconha (Cannabis) contem cerca de 500 substâncias diferentes, das quais cerca de 100 são canabinoides. As mais conhecidas são o tetra-hidro-canabinol (THC), seu derivado canabinol (CBN) e o canabidiol (CBD), mas também outras têm sido estudadas no tratamento potencial de transtornos psiquiátricos como, por exemplo, a canabidivarina, (CBDV), uma substância análoga do canabidiol, mas com uma cadeia lateral mais curta. A proposta de uso destas substâncias como tratamento para as mais diversas doenças tem sido muito propagado e, infelizmente, muitas vezes de modo que a ciência não justifica. Sendo psiquiatra, frequentemente se é convidado para palestras sobre os benefícios da "maconha medicinal" e do canabidiol. De 17 referências, na plataforma Pubmed, nos últimos 5 anos, contendo usando como procura os termos "cannabis" e "autism" revisões sistemáticas sobre os eventuais benefícios destas drogas no TEA, 14 abordam se referem a estudos e são unânimes na conclusão de que, apesar de alguns benefícios potenciais, AINDA NÃO HÁ COMPROVAÇÃO SUFICIENTE, ATRAVÉS DE PESQUISAS COM METODOLOGIA SUFICIENTEMENTE BOA, DE QUE CANNABIS OU DERIVADOS DE CANNABIS SEJAM BENÉFICOS NO TRATAMENTO DO TEA.


Referências


Batalla A et al. The Impact of Cannabidiol on Human Brain Function: A Systematic Review.  Front Pharmacol. 2021 Jan 21;11:618184. doi: 10.3389/fphar.2020.618184. eCollection 2020.PMID: 33551817 

de Bode N et al. Clin Psychol Rev. 2025 Jun;118:102581. doi: 10.1016/j.cpr.2025.102581. Epub 2025 Mar 29. The differential effects of medicinal cannabis on mental health: A systematic review. PMID: 40186931 

Cammà G et al. Therapeutic potential of minor cannabinoids in psychiatric disorders: A systematic review.   Eur Neuropsychopharmacol. 2025 Feb;91:9-24. doi: 10.1016/j.euroneuro.2024.10.006. Epub 2024 Nov 13. PMID: 39541799 

Cerasuolo et al. Examining Predictors of Different ABA Treatments: A Systematic Review  Behav Sci (Basel). 2022 Aug 4;12(8):267. doi: 10.3390/bs12080267. PMID: 36004838 PMCID: PMC9405151 DOI: 10.3390/bs12080267

Chhabra M et al.   Cannabinoids for Medical Purposes in Children: A Living Systematic Review.  Acta Paediatr. 2025 Sep;114(9):2148-2159. doi: 10.1111/apa.70140. Epub 2025 May 28. PMID: 40437694 

Eckes et al.  Comprehensive ABA-based interventions in the treatment of children with autism spectrum disorder - a meta-analysis BMC Psychiatry. 2023 Mar 2;23(1):133 PMID: 36864429 PMCID: PMC9983163 DOI: 10.1186/s12888-022-04412-1

He et al.  Effects of probiotics on autism spectrum disorder in children: a systematic review and meta-analysis Nutrients. 2023 Mar 15;15(6):1415. doi: 10.3390/nu15061415. PMID: 36986145

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Imagem: Autistic boy receiving ABA therapy autora: Kate Blais for U.S. Air Force., domínio público, via Wikimedia Commons

sábado, 13 de setembro de 2025

O QUE É AUTISMO - TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA? (SEGUNDA PARTE)




Em 1943, o psiquiatra austríaco Hans Asperger publicou um estudo de quatro casos de crianças cuja característica principal era um profundo prejuízo do contato com o meio-ambiente, sobretudo com as pessoas (principalmente indiferença, por vezes chegando ao ponto de as tratar como seres inanimados). A relação com objetos também estava prejudicada, indo de uma intensa repulsa ao contato com alguns - por exemplo, certos tecidos de roupas  - até o fascínio exagerado por outros, levando-os a ficarem por longo tempo os manipulando ou, em outros casos, os acumulando (não por sua utilidade, mas por suas características externas como, por exemplo, coleções de caixas de fósforos). Diferentemente de Kanner (veja publicação anterior), Asperger não considerava essencial a presença  de dificuldades precoces com a linguagem (apesar de poderem estar presentes com alguma frequência). O conceito que se depreende do artigo de Asperger é de um quadro muito menos homogêneo do que o descrito por Kanner - e muito próximo da definição atual do transtorno do espectro autista (TEA). 

Asperger inicia o artigo fazendo longas considerações sobre a questão da individualidade de cada caso (ou seja, não é possível encaixar todas as características num dado diagnóstico), mas termina concluindo que, apesar da existência desta complexidade, há necessidade de se encontrar aspectos repetidos entre os indivíduos, que levem a uma classificação para melhor poder estudar os casos. Cita diversos autores que estabeleceram classificações de personalidade (Asperger considera o autismo um transtorno de personalidade - ou "psicopatia", como se chamava antigamente) e conclui que nenhum deles cobre as características que encontrou em seus pacientes (o que não era totalmente verdade, como escrevi na primeira parte desta postagem).

Asperger descreve apenas quatro casos, mas dá muitos detalhes sobre cada um deles e, ao final do artigo, diz ter encontrado mais de duzentas crianças com as características da "psicopatia autista", ao longo de dez anos. Comenta, na discussão, que as características individuais são muito variáveis, incluindo o grau de comprometimento do contato e o nível intelectual - abrindo o diagnóstico, assim, para o leque do que hoje em dia se chama "transtorno do espectro autista" (TEA) ou mesmo para a questão da "neuroatipicidade", hoje em dia tão comentada. Em relação à constância de características, cita que as crianças se mostram diferentes desde os dois anos de idade, pelo menos - o que também está incluído nos critérios diagnósticos atuais. As dificuldades no "aprendizado das simples tarefas da vida prática" e com a "adaptação social", na criança pequena, teriam a mesma origem, segundo Asperger, das dificuldades posteriores com aprendizado e comportamento, na criança em idade escolar, das dificuldades com trabalho e do desempenho atípico, no jovem - e que se relacionam às dificuldades conjugais e conflitos sociais do adulto. Asperger comenta que, para quem aprendeu a reconhecer pessoas desse molde, reconhece-as de imediato, quando entram no ambulatório, através de seus comportamentos iniciais ou da primeira palavra que dizem. Seu olhar também seria característico que, ao invés de se dirigir ao ambiente e às pessoas, se dirigiria para longe ou para o interior da pessoa. Elas também não fariam contato com o olhar, ao falarem com outra pessoa. Porém, o olhar destas crianças se ergueria e se expressaria de modo resoluto, quanto têm em mente fazer alguma "maldade" . (Interessantemente, já na descrição dos casos, Asperger descreve as crianças autistas como inerentemente más.) 

O artigo comenta também o alto desempenho dos autistas inteligentes e sua originalidade (por exemplo, crianças de 6 a 7 anos dando definições excêntricas das diferenças entre objetos, quando questionadas, em testes de inteligência. Assim, a diferença entre uma escada e uma escada e uma escadaria seria que a primeira sobe de forma pontuda, enquanto a segunda sobe em anéis, serpenteando. Por trás destas manifestações estaria a capacidade das crianças autistas de verem as coisas e processos do ambiente através de novos pontos de vista (itálico meu). E estes pontos de vista seriam, por vezes, espantosamente maduros, muito além do que se espera em crianças da mesma idade. No segundo caso do artigo (Harro L.), por exemplo, além da originalidade de definições de palavras e diferenças entre coisas, o menino possui uma habilidade de aritmética que, além de estar acima do esperado pela idade (8 anos e meio), se manifesta através de modos de calcular originais e incomuns. Por exemplo: 52 - 25 = 27, porque "2 vezes 25 é 50, mais 2 é 52; e 25 mais 2 é 27".

Em relação à interação social, Asperger comenta que as dificuldades provém do "estreitamento" (Einengung) da relação do autista com o ambiente, estando ausente o sentimento de vinculação com a família e, assim, os principais conflitos ocorreriam dentro da família. Novamente, Asperger se refere aos atos maldosos dessas crianças, que conseguiriam descobrir o que de mais desagradável e doloroso conseguem causar mas (ao mesmo tempo), chegando por vezes a pensamentos ou atos "sádicos" (sic), mas lhes faltaria a sensibilidade para perceber o quanto isto afeta os outros. Na presença da família, andam pelo ambiente sem interagir ou interagem com objetos de forma estereotipada, agrupando blocos de brinquedo de montar de acordo com a cor, formato ou tamanho, ao invés de construir algo com eles. De modo geral, seguem seus próprios impulsos, sem se importar com o ambiente. A família pode evitar conflitos simplesmente deixando a criança seguir seu próprio caminho, ocorrendo problemas apenas nas tarefas do dia-a-dia, como levantar, lavar-se, vestir-se, comer. Consequentemente a estas características, surgem dificuldades na escola, onde a criança precisa apresentar obediência. No entanto, Asperger comenta que a tendência das crianças autistas é melhorar com a idade e apenas uma minoria não consegue nenhuma adaptação social, sobretudo aquelas que têm deficiência intelectual. Isto, porque a dificuldade dos autistas está na interação social, porém podem ter um excelente desempenho profissional (sobretudo em áreas extremamente especializadas, como matemática, áreas técnicas, química e mesmo funcionários), o que poderia ser, segundo o autor, uma "hipertrofia" compensatória de suas deficiências. Assim, estes indivíduos poderiam ter uma inserção social suportável ou mesmo de excelência. Desta forma, também teriam seu lugar no tecido do organismo social.

Referência: Asperger, H. (1944) Die “Autistischen Psychopathen” im Kindesalter. [The “Autistic Psychopaths” in Childhood]. Archiv für Psychiatrie und Nervenkrankheiten, 117, 76-136. https://doi.org/10.1007/BF01837709

Imagem: A boy looking at a molecule model  Poindexter Propellerhead, CC BY-SA 3.0 <http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/>, via Wikimedia Commons