Em seu livro Crianças de Asperger (1), a historiadora Edith Sheffer defende a tese de que classificar como autistas crianças cuja principal dificuldade reside em suas deficiências de comunicação social se insere no contexto ideológico do nazismo.
Em 1943, o psiquiatra estadunidense Kanner (2) publicou um artigo que, pela primeira vez, conceituava o autismo como um transtorno específico. Antes dele, outros autores como, por exemplo, em 1926, a psiquiatra soviética G. E. Sucharewa (3) já haviam publicado casos semelhantes, mas até Kanner o autismo era considerado apenas um sintoma. As crianças descritas por Kanner tinham, além das deficiências de comunicação social, graus diversos de deficiência intelectual. Em 1944, o psiquiatra austríaco Asperger, trabalhando na Viena nazista, publicou também um artigo (4) (provavelmente sem ter conhecimento do artigo de Kanner), no qual descrevia casos semelhantes àqueles do psiquiatra americano, porém que não apresentavam, necessariamente, deficiências intelectuais: ao contrário, poderiam ter desempenho intelectual até acima da média. O que caracterizava as crianças de Asperger, eram suas dificuldades de comunicação (e inserção) social. Asperger considerava que seus autistas tinham uma deficiência de Gemüt, uma palavra alemã com diversos significados mas que, no caso delas, se referia a uma incapacidade emocional de se encaixarem devidamente na sociedade "enquanto organismo". Esta ideia da sociedade como um organismo biológico era essencial na ideologia nazista (5), segundo a qual indivíduos e raças inferiores representariam tumores dentro deste organismo, que deveriam ser extirpados. No entanto, Asperger expressa na sua publicação que crianças autistas poderiam ser educadas com base em suas capacidades intelectuais e, com isto, tornarem-se socialmente úteis. Esta avaliação positiva era essencial para salvar a vida delas, numa época em que crianças consideradas não educáveis frequentemente poderiam ser assassinadas em locais como o complexo psiquiátrico Steinhof, na clínica Spiegelgrund, para onde Asperger também encaminhava pacientes. E hoje em dia se acredita que seria impossível Asperger não saber que no Pavilhão 15 de Steinhof (foto acima), crianças eram mortas com injeções ou deixadas para morrerem de doenças que contraíam ao serem propositalmente subnutridas e presas ao leito. Além do fato de a Associação Psiquiátrica Americana ter eliminado nomenclaturas diversas para designar formas distintas de autismo, englobando-as com o nome de Transtornos do Espectro Autista (6), a participação (mesmo que indireta) de Asperger no programa de eutanásia nazista constitui um dos motivos pelos quais se desaconselha, atualmente, o uso de "síndrome de Asperger" para denominar o transtorno de pessoas com dificuldades de comunicação social, porém sem deficiência intelectual - considera-se que uma pessoa envolvida no assassinato de crianças não deve ser homenageada.
Referências
1. Sheffer E (2019) Crianças de Asperger - as origens do autismo na Viena Nazista, acessado em 13/08/2023
2. Kanner L (1943) Autistic disturbances of affective contact, acessado em 13/08/2023
3. Sucharewa G E (1926) Die schizoiden Psychopathien im Kindesalter, acessado em 13/08/2023
4. Asperger H (1944) Die "autistischen Psychopathen" im Kindesalter, acessado em 13/08/2023
5. Bialas W (2014) Moralische Ordnungen des Nationalsozialismus, acessado em 13/08/2023
6. Associação Psiquiátrica Americana (2023) Associação Psiquiátrica Americana (APA) Manual diagnóstico e estatístico DSM-5-TR, acessado em 13/08/2023
Imagem: Steinhof, Pavillion 15

Obrigada pela contribuição, Dr. Ivan. Quanto mais informação temos sobre o tema, mais aprendemos a lidar com o assunto.
ResponderExcluirOlá, Andrea!
ResponderExcluirAgradeço seu comentário. Fique à vontade para perguntar, se se interessa pelo assunto!