terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

DOUTOR, EU SOU AUTISTA?



De modo muito resumido, o diagnóstico de transtorno do espectro autista (TEA) se baseia em dois critérios, segundo a Associação Psiquiátrica Americana: 

1) Déficits persistentes na comunicação social (deficiências na reciprocidade social-emocional, deficiências em comportamentos comunicativos não verbais usados na interação social e déficits no desenvolvimento, manutenção e compreensão dos relacionamentos) 

2) padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades (movimentos, uso de objetos ou fala estereotipada ou repetitiva, insistência em mesmice, adesão inflexível a rotinas ou padrões ritualizados de comportamento verbal e não verbal; interesses altamente restritos ou fixados, de intensidade ou foco anormal; hiperreatividade ou hiporreatividade a estímulos sensoriais ou interesse incomum por aspectos sensoriais do ambiente). 

Se lermos com atenção, veremos que vários comportamentos diferentes podem ser encaixados nestas definições. Por este motivo, recebemos no consultório pessoas que nos procuram para saber se são autistas porque, por exemplo, têm dificuldades em iniciar ou manter relacionamentos ou têm algum hábito rígido ou interesse incomum. Entretanto, tais características podem ter muitas origens: por exemplo, dificuldades em iniciar relacionamentos frequentemente são devidos a um transtorno de ansiedade chamado de "fobia social", que se assemelha a uma timidez excessiva, um medo de "fazer feio", de ser avaliado ou julgado e achado ridículo e que impede ou muito dificulta a pessoa se aproximar de alguém;  hábitos rígidos podem fazer parte de uma personalidade obsessiva (pessoas que não toleram ou toleram com muita dificuldade mudanças em hábitos ou mudanças no contexto em que vivem ); interesses incomuns, por outro lado, podem inclusive ser normais, fazer parte dos hábitos de pessoas que são popularmente chamadas de "excêntricas", mas sem que esta excentricidade lhes traga algum prejuízo.

Uma vez, recebi uma pessoa que achava que poderia ser autista e se descrevia como "sem senso de humor" e desinteressada por relacionamentos. Conversando, com calma e pedindo exemplos, ficou claro que ela não ria de piadas que fossem pouco inteligentes (o que revelava um senso de humor mais refinado e não uma falta dele) e como era muito mais culta e inteligente que a maioria das pessoas que encontrava, sentia um certo desprezo por elas e, por isto, não fazia questão de cumprimentá-las ou saber como estavam - esta característica pode até não ser muito simpática, mas certamente não é o tipo de desinteresse que algumas pessoas com TEA apresentam.

Por este motivo, as pessoas devem evitar o autodiagnóstico e, em caso de dúvidas, devem procurar um profissional habilitado - geralmente psiquiatras - para fazer o diagnóstico. Outro aspecto importante é que, ao contrário do que muitas pessoas (e alguns profissionais) pensam, na imensa maioria dos casos, não há necessidade de testes psicológicos ou "neuropsicológicos" para se fazer o diagnóstico, sendo suficiente uma entrevista psiquiátrica cuidadosa, utilizando as informações fornecidas pelo(a) paciente e (principalmente em crianças), pelos familiares ou, mais raramente, de seus professores. No caso de crianças muito pequenas ou de crianças que tenham dificuldades de se expressar em palavras, vídeos registrando comportamentos que a família ache incomuns também podem complementar a consulta psiquiátrica.


Referência bibliográfica

American Psychiatric Association. (2022). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed., text rev.). https://doi.org/10.1176/appi.books.9780890425787

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Menina com TEA


sábado, 8 de fevereiro de 2025

PSICOTERAPIA OU REMÉDIOS, O QUE É MELHOR?





A Associação Psicológica Americana define psicoterapia como “qualquer serviço psicológico prestado por um profissional treinado que utiliza principalmente formas de comunicação e interação para avaliar, diagnosticar e tratar reações emocionais, formas de pensar e padrões de comportamento disfuncionais”.1

O que seriam estas “reações emocionais, formas de pensar e padrões de comportamento disfuncionais”? São reações que trazem sofrimento ou levam a outros prejuízos na vida da pessoa. Por exemplo, o luto relacionado à perda de um ente querido traz sofrimento. Por outro lado, se uma pessoa abusa de bebidas alcoólicas, pode até não apresentar sofrimento (pelo menos, num primeiro momento, contanto que não seja impedida de beber), porém as consequências do uso podem levar a problemas de saúde, profissionais e familiares. Portanto, este comportamento é disfuncional, apesar de não levar, necessariamente, a um sofrimento imediato. Um a pessoa que esteja num episódio maníaco, sentindo-se superpoderosa e ultrarrica, com a sexualidade exacerbada e gastando dinheiro de modo incompatível com suas reais condições financeiras, também pode não estar sofrendo, porém seus comportamentos, juntamente com sua incapacidade de perceber o quanto está alterada, traz consequências que lhe trarão, futuramente, sofrimento.

No primeiro exemplo acima, da pessoa em luto, o atendimento psicoterápico pode ajudar a pessoa num processo de aceitação progressiva e reconstrução da sua vida e relacionamentos, saindo de um sofrimento muitas vezes paralisante. No caso da pessoa que tem um transtorno de uso de álcool, também, uma psicoterapia com professional com conhecimento especializado nessa área pode ajudá-la a compreender melhor os fatores e contextos correlacionados ao seu uso disfuncional e, assim, aos poucos, aprender a controlar-se2 de modo mais eficaz. Finalmente, no terceiro exemplo, a psicoterapia não costuma ser muito útil, enquanto o(a) paciente estiver em crise, pois as alterações do funcionamento cerebral são tão profundas, num caso desses, que impedem que as técnicas psicoterápicas levem a alterações suficientemente abrangentes e duradouras.

No que se refere ao tratamento medicamentoso, numa situação de luto por perda de um ente querido, geralmente não há indicação de uso de medicação, pois se trata de uma reação normal, apesar de, em algumas pessoas, poder ser mais prolongada e profunda que em outras. No segundo exemplo, do transtorno de uso de álcool, além da psicoterapia, existem pelo menos três medicações que podem diminuir os riscos de recaída (acamprosato, dissulfiram e naltrexona) e, portanto, a associação de medicamentos com a psicoterapia é recomendada. No último exemplo, o caso do episódio maníaco, ele deve obrigatoriamente ser tratado com medicação, pois os medicamentos podem ajudar a diminuir a intensidade dos sintomas já a partir do início do uso e, com o uso continuado, podem diminuir a duração da crise e, finalmente, prevenir recaídas.

POR QUE ESTAS DIFERENÇAS?

O cérebro pode apresentar problemas de funcionamento detectáveis por métodos laboratoriais e de imagens e, nestes casos, o tratamento geralmente fica a cargo dos neurologistas. Porém, há alterações de seu funcionamento mais sutis, que não podem ser vistos através de metodologia laboratorial convencional, mas que levam a alterações de pensamentos, emoções e da interação com o ambiente. Este tipo de alterações, geralmente, fica a cargo dos psiquiatras. Dentro do grupo destes transtornos, alguns têm características mais biológicas (como o transtorno bipolar) e outros têm características mais de aprendizados disfuncionais ou seja, a história de vida e de interações da pessoa fez com que ela tivesse comportamentos (e emoções e pensamentos) que a fazem sofrer – em outras palavras, a pessoa não está conseguindo lidar com certas situações difíceis e isto lhe traz um intenso sofrimento (como no exemplo do luto, acima). Finalmente, alguns transtornos têm claros components biológicos (por exemplo, em algumas famílias pode haver uma predisposição genética para o abuso de álcool), mas têm também aspectos comportamentais muito relevantes (por exemplo, mesmo em famílias nas quais haja uma propensão genética para o abuso de álcool, nem todas as pessoas terão o transtorno). É neste casos que se indica tanto um tratamento medicamentoso, visando à compensação da predisposição biológica quanto psicoterápica para ajudar a pessoa a compreender seu próprio funcionamento e, com isto, aprender novos comportamentos que lhe possibilitem enfrentar seu transtorno.

Desta forma, respondendo a pergunta inicial, não se pode dizer que a psicoterapia seja melhor que os remédios ou estes sejam melhores que a psicoterapia: a decisão vai depender do diagnóstico de cada pessoa e, na maioria dos casos, ambos devem ser usados para se ter os melhores resultados.

 

Referências bibliográficas

American Psychological Association (2023). Psychotherapy. In APA dictionary of psychology  https://dictionary.apa.org/psychotherapy , acessado em 28/06/2024


Imagem: Mental health  https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Mental-health 2313428_640.png (acessado em 08/01/2025)

 

Notas

1. Traduzido pelo autor.

2. No caso, trata-se de controlar seu comportamento, o que não significa tentar beber de forma controlada, pois em muitos casos o objetivo do tratamento é que a pessoa consiga se abaster, dado que nos casos mais graves a probabilidade de conseguir beber controladamente é minima e, paradoxalmente, mais difícil de atingir que a abstinência.